Um trecho do livro “História da Bruxaria”, de Jeffrey B. Russell e Brooks Alexander, chamou-me a atenção há algum tempo durante a leitura. Coincidência ou não, é justamente um ponto que considero o mais forte na narrativa trazida por “Ãgawaraitá: Nancy”, curta da diretora Priscila Tapajowara, exibido na 4a edição do Olhar do Norte.

O trecho em questão aborda como a participação de neopagãos foi essencial na United Religions Iniciative (URI, uma espécie de contraparte religiosa das Nações Unidas, criada nos anos 1990). O motivo: esse sistema de crenças trouxe, de forma renovada, um senso de emergência à comunhão entre homem e natureza, com o respeito ao meio ambiente sendo um elemento importante na prática religiosa.

A ironia é que, ao vermos o documentário de Tapajowara e acompanharmos o relato do Pajé Nató Tupinambá, percebemos que aquilo que o livro relata não tem nada de novo dentro da espiritualidade apresentada em “Ãgawaraitá: Nancy”. Presente em inúmeros sistemas de crença de nossos povos tradicionais, a cisão entre homem e natureza tão presente, tão debatida nas ciências não faz sentido no mundo do pajé, sendo a visão sistêmica e integrada de homem na natureza o senso comum, e o respeito aos ciclos naturais e seus poderes, o óbvio.

Pontos de interseção

Em “Ãgawaraitá: Nancy”, o embate entre conhecimento científico, religioso e empírico dá lugar aos pontos de interseção entre eles. Ao longo do curta, o encontro do pajé com uma entidade intitulada Encantada Nancy é a porta de entrada para sua autodescoberta na religiosidade, debates sobre os benefícios das plantas medicinais e da cura espiritual e a busca mandatória da preservação da natureza como forma de manutenção não apenas das terras sagradas indígenas, mas da Terra com T maiúsculo.

É interessante também como o relato do pajé, exposto em falas tão didáticas e edição mais didática ainda, conseguem englobar tantas ideias complexas e transformá-las em algo que públicos diversos possam compreender e abraçar. Afinal, como ele mesmo explica, a função social reguladora do pajé perpassa a figura do pai, do padre, do psicólogo; logo, o entendimento é a chave mestra para repassar sua ancestralidade à comunidade, e tanto o personagem quanto a diretora abraçam esse norte para a sua comunicação.

Notas sobre a magia

Dito isto, é bem verdade que “Ãgawaraitá: Nancy” poderia aproveitar melhor outros recursos estilísticos em um momento específico a partir de uma maior ousadia na montagem: trata-se justamente da sequência de reconstituição do primeiro encontro entre o Pajé Nató Tupinambá e a Encantada Nancy, o qual conta com atores interpretando os dois, além dos tios de Nató.

Sim, é um momento no curta que já traz uma quebra em relação ao resto do documentário, no qual acompanhamos o Pajé em seus afazeres e contações, mas não deixo de imaginar que esse encontro tão impactante para a vida de Nató poderia ser expresso com um pouco mais de magia (não bem a Magia com M maiúsculo dos Encantados, mas a magia cinematográfica mesmo).

Esse é um pequeno adendo a um curta bastante simples e efetivo em seu propósito de registrar e firmar o orgulho de nossas raízes tradicionais, ainda tão pouco respeitadas e representadas. Ao fim da obra, com os créditos rolando, dá ainda uma alegria ver tantos indígenas envolvidos na produção, independentes de um outro que venha contar suas histórias. Nesse sentido, dar-lhes a fruição mais fácil possível é também uma forma de garantir sua penetração, o que faz da simplicidade do curta uma arma poderosa.