Pouco mais de 80 anos atrás, Mr. Smith chegava à Washington em “A Mulher Faz o Homem”. A admiração do personagem de James Stewart com a capital dos EUA e os prédios históricos exalava um espírito patriótico, idealizado e de respeito solene às instituições formadoras da autointitulada maior e mais importante democracia do mundo. Na mesma cidade, 17 quadras distantes do Capitólio, sede do Legislativo do país, temos um outro retrato deste mesmo EUA, onde a violência policial e de gangues, o racismo e as drogas dominam a cena ceifando a vida e e a esperança da população negra.

Este EUA bem distante do idealismo e glamourização do ‘american way of life’ é o cenário do épico documentário “17 Quadras”. O filme cobre 20 anos da família Stanford através de gravações feitas tanto pelos membros dela quanto pelo diretor Davy Rothbart, amigo da família. Acompanhamos o drama da matriarca, Cheryl, em sua luta contra as drogas e na criação dos três filhos – o caçula Emmanuel, garoto tímido e bastante aplicado nos estudos, Smurf, o mais velho, envolvido com gangues locais e usuário de drogas, e Denice, garota com aspiração de ser policial. Durante este percurso, uma tragédia absurda molda a vida deles.

De “Faça a Coisa Certa” a “Moonlight” até “Fruitvale Station” e “A 13ª Emenda”, o cinema norte-americano já retratou por diversas vezes de forma crua e dura o desafio de ser negro no país. Por estes históricos tristes motivos, “17 Quadras” pode até não ser dos mais surpreendentes quanto aos assuntos e o universo que aborda, porém, através do extenso retrato geracional de décadas e do intimismo com que se insere no calvário carregado pelos Stanfords, o documentário potencializa a tragédia social de uma maneira palpável e irrefutável.

Mesmo que não indicasse a tragédia maior como faz logo no início do filme, “17 Quadras” carrega uma aura trágica em cada segundo de seus 97 minutos. Das condições de moradias precárias passando pelo ambiente de violência policial e das gangues, o documentário mostra como aquele universo, carregado de dores, frustrações e o constante perigo pelo fato de serem negros, cobra um preço caro para que aquelas pessoas continuem existindo. Nisso, as drogas acabam sendo uma válvula de escape levando Cheryl e Smurf ainda mais para o fundo do poço, enquanto Denice surge imobilizada pelos dramas dos familiares ao seu redor. Por isso, Emmanuel acaba sendo a válvula de escape, a esperança no meio da escuridão, e o destino dele somente reforça este desesperador cenário.

Esta jornada consegue ser ainda mais angustiante pela forma como Davy Rothbart consegue se inserir naquele ambiente, o que permite a captação de momentos tão genuínos dos seus personagens, especialmente, ao destacar a sobriedade cativante de Emmanuel ou o olhar de medo de Justin, filho de Denice, ao ouvir o som da sirene do carro da polícia ou na revelação devastadora feita por Cheryl nutrida de tanta dor após tantas décadas na reta final. A ideia de permitir aos retratados filmarem a si mesmos completa esta inserção dolorida naquele universo, registrando trechos íntimos e fundamentais para compreender a tragédia social de pessoas marginalizadas que os EUA viram as costas.

Com mil horas de gravações brutas, a montadora Jennifer Tiexiera faz um trabalho brilhante ao sintetizar o drama dos Stanfords de forma impecável sem perder o ritmo e muito menos o foco da história que o documentário deseja contar. “17 Quadras”, sem dúvida, é um retrato devastador de uma América injusta e cruel, longe de ser o sonho americano, ainda que haja sempre esperança do melhor, pois, como diz Cheryl somente este sentimento faz com que seja possível seguir em frente.

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...

‘Instinto Materno”: thriller sem brilho joga no seguro

Enquanto a projeção de “Instinto Materno” se desenrolava na sessão de 21h25 de uma segunda-feira na Tijuca, a mente se esforçava para lembrar da trama de “Uma Família Feliz”, visto há menos de sete dias. Os detalhes das reviravoltas rocambolescas já ficaram para trás....

‘Caminhos Tortos’: o cinema pós-Podres de Ricos

Cravar que momento x ou y foi divisor de águas na história do cinema parece um convite à hipérbole. Quando esse acontecimento tem menos de uma década, soa precoce demais. Mas talvez não seja um exagero dizer que Podres de Ricos (2018), de Jon M. Chu, mudou alguma...

‘Saudosa Maloca’: divertida crônica social sobre um artista boêmio

Não deixa de ser interessante que neste início da sua carreira como diretor, Pedro Serrano tenha estabelecido um forte laço afetivo com o icônico sambista paulista, Adoniram Barbosa. Afinal, o sambista deixou a sua marca no samba nacional dos anos 1950 e 1960 ao...

‘Godzilla e Kong – O Novo Império’: clima de fim de feira em filme nada inspirado

No momento em que escrevo esta crítica, caro leitor, ainda não consegui ver Godzilla Minus One, a produção japonesa recente com o monstro mais icônico do cinema, que foi aclamada e até ganhou o Oscar de efeitos visuais. Mas assisti a este Godzilla e Kong: O Novo...

‘Uma Família Feliz’: suspense à procura de ideias firmes

José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – "As Verdades", ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar.  A trama de "Uma Família Feliz" – dolorosamente óbvio na ironia do seu título –...

‘Donzela’: mitologia rasa sabota boas ideias de conto de fadas

Se a Netflix fosse um canal de televisão brasileira, Millie Bobby Brown seria o que Maisa Silva e Larissa Manoela foram para o SBT durante a infância de ambas. A atriz, que alcançou o estrelato por seu papel em “Stranger Things”, emendou ainda outros universos...