A Terra Negra dos Kawá” deixou a clara impressão de que Sérgio Andrade estava se repetindo em temas já abordados em “A Floresta de Jonathas” e “Antes o Tempo Não Acabava”. Parecia que os caminhos traçados até ali tinham se esgotado, tornando-se urgente e necessário novos rumos para o diretor amazonense mais importante da última década pelos caminhos que desbravou com seus longas-metragens.

Selecionado para Mostra Norte do Festival Olhar do Norte, “Cercanias / Gatos” marca o retorno de Sérgio aos curtas-metragens e se revela o mais divertido filme da carreira do diretor. Afinal, o ponto de partida é absolutamente trivial: três gatinhos – Mildred (a protagonista), Andrei e Billy – se abrigam no condomínio do diretor justo durante a pandemia, gerando desavenças entre os moradores que os desejam fora dali e os que gostam deles.

Este ponto de partida permite a Sérgio Andrade brincar no microcosmo quase felliniano de um condomínio de classe média das grandes cidades brasileiras. Logo no início, já ouvimos um arranca-rabo entre o diretor com alguém no interfone defendendo os gatinhos em relação à morte de um pombo na lixeira. Não demora muito para surgir um machão hétero top protestando por conta de um carro arranhado colocando subitamente a culpa no trio e os ameaçando, uma vizinha citando que Mildred é uma gata namoradeira e pode espalhar doenças e, por fim, a síndica dando um pito naqueles que defendem os felinos.

Nesta clara experimentação de brincar entre a ficção e documentário, “Cercanias / Gatos” aborda as pequenas violências, rivalidades e intolerâncias escondidas nestes ambientes pretensamente civilizados e em falas nem tão pacíficas assim. Enquanto isso, estas mesmas pessoas estão cada vez mais isoladas em seus apartamentos, restando apenas a observação distante de seus vizinhos. As lembranças do já clássico “O Som ao Redor” são inevitáveis, mas, claro, em uma escala bem, bem menor e sem a mesma profundidade alcançada por Kleber Mendonça Filho.

E esta profundidade não ocorre aqui simplesmente pelo foco principal de “Cercanias / Gatos” estar em Mildred, Andrei e Billy com toda a despretensão deliciosa daquelas vidas, transformando-se no maior mérito do curta. A diretora de fotografia Valentina Ricardo não poderia ter um elenco melhor e mais expressivo: mesmo para quem não curte felinos como eu (perdão, sociedade), as sequências do “MMA” e o olhar 43 de um deles para a câmera são irresistíveis para nos apegarmos aos bichinhos. Tudo isso alcançado pela intimidade dos gatos com ela a ponto da câmera praticamente se tornar um quarto elemento daquela relação.

Ganhadora do prêmio da categoria em Gramado por “O Barco e o Rio”, Valentina ainda transforma aquele condomínio em um universo rico e repleto de detalhes ora claro e vivo ora escuro e sombrio. A costura feita pela montagem de Lucas H. Rossi (diretor do ótimo “Atordoado, Eu Permaneço Atento”) oferece dinamismo a um filme que tinha tudo para ser uma viagem interessante apenas para Sérgio Andrade, mas, que, inesperadamente, mostra caminhos ricos para o diretor amazonense explorar em futuros filmes.

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