[…] a história oral é um procedimento integrado a uma metodologia que privilegia a realização de entrevistas e depoimentos com pessoas que participaram de processos históricos ou testemunharam acontecimentos no âmbito da vida privada ou coletiva.

 Lucilia de Almeida Neves Delgado

Partindo do pressuposto explanado para autora, o que é a história oral senão a preservação da história e da memória? As narrativas (re)construídas a partir da prerrogativa de análise de um período sociohistórico, político e econômico de uma determinada sociedade, de uma comunidade, etc. É nesse âmbito da história oral que conhecemos e reconhecemos a história e o que ela nos conta, o que precisa e o que deve ser contado. Também pode ser compreendida como a saída de um espaço unilateral para a bilateralidade, em outras palavras, a história por um outro viés, sob uma nova ótica senão aquela que já foi contada e contestada, uma ótica que compreenda o todo, o macro em sua totalidade e estabeleça um vínculo entre os sujeitos sociais inseridos naquele contexto.

É a partir da preservação da memória através da história oral que Santiago Mitre (“A Cordilheira”, 2017) orquestra com maestria “Argentina, 1985”, fazendo dessa produção argentina forte candidata ao Oscar de Melhor Filme Internacional na cerimônia de 2023. Mais que um filme, trata-se de um documento histórico social sobre a ditadura argentina, entre 1974 e 1983, e o resgaste da humanidade perdida das vítimas, bem como a acusação da Junta de Militares, responsável por um dos momentos mais turbulentos do país.

O DELICADO RETORNO AO PASSADO

Voltar ao passado é sempre um acontecimento complicado no que tange emoções. Voltar ao passado para contar uma passagem violenta que marcou não somente a si, mas, toda uma sociedade, uma nação, é um estado de alerta em tentar de todas as maneiras tratar com cuidado os gatilhos acionados. Nesse sentido, Mitre faz muito bem: “Argentina, 1985” assume o controle de um drama histórico sem se esquecer de que é uma produção cinematográfica, em outras palavras, assume o risco, haja vista que ele não muda o nome das figuras históricas, joga com o drama e o humor para atenuar a tensão e a dor que ele carrega consigo, unindo a trilha sonora espetacular nos levando ao auge da música argentina dos anos 1980.

E aí também podemos falar da ambientação, direção de arte, figurino e fotografia também. Por mais que pouco se saiba dessa passagem fúnebre do país, Mitre acerta em fazer um filme universal, isto é, é bem particular por seu histórico, mas é totalmente compreensível para quem está alheio ao bojo que lhe circunda.

No final de 1984, Julio Strassera (Ricardo Darín, fabuloso em todas as instâncias possíveis) é um promotor que, a contragosto, deve acusar a Junta de Militares por conta da ditadura vigente na Argentina por quase 10 anos. Para isso, ele busca reunir uma equipe de figurões, todos eles agora fascistas, recusam. Cabe a Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), um jovem advogado, reunir uma equipe de outros jovens advogados e promotores inexperientes e com uma visão de humanidade e justiça muito fortes para reunir provas. Em cinco meses, coletam provas e testemunhos de mais de 700 pessoas, entretanto, há um longo caminho até que o julgamento aconteça, afinal, estão lidando com figurões; o próprio Ocampo é de uma família quatrocentona de militares.

POR UM Julio Strassera BRASILEIRO

“Argentina, 1985” também é um estudo sobre um sujeito inserido em situação de estresse e trauma. Era a redemocratização do país, a esperança estava vigente e a lei se fazia presente mostrando que as Forças Armadas não poderiam estar acima dela. Não há como não fazer um contraponto com o Brasil: temos um histórico absurdo da ditadura que ainda não foi sanada, ainda há corpos sumidos, famílias traumatizadas e um (ainda) presidente que exalta a tortura, a ditadura e tudo de nefasto que vem com ela. Não é uma surpresa, já que o Brasil ainda nem  superou a síndrome de colonizador e escravatura.

E aí volto para Lucilia Delgado em “História Oral: memória, tempo, identidades” (2010), quando ela diz que “a memória é uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo presente”. A memória do Brasil tem muito que aprender com os hermanos, em sua consistência, veemência e busca por justiça acima de qualquer instituição. Sob qualquer ameaça vigente, há vidas, sob qualquer instância, há vidas, sob qualquer coisa e sangue derramado para mascarar as injúrias dos poderosos contra a democracia e a liberdade de expressão, há vidas. Há vidas, a memória exalta a história e as vidas que nela existiram e existem é preciso edificá-las na sociedade.

“Argentina, 1985” é, sobretudo, um filme sobre memória e justiça para com as vítimas, ouvindo seus nomes, suas histórias, suas dores, nesse processo de democratização. Nesse sentido, estamos muito, muito, muito atrás dos nossos “rivais” em uma sociedade que tem em suas entranhas o orgulho legitimo de ser genocida. Quando teremos um Julio Strassera para fazer jus à nossa memória e história?