“Por que caímos? Para aprender a nos levantar”.

Essa frase é dita algumas vezes pelos personagens de Batman Begins, inclusive pelo pai de Bruce Wayne. Ela se aplica dentro da história, mas também é possível enxergar aí um comentário sutil a respeito da franquia Batman como um todo e como ela foi tratada ao longo dos anos pela Warner Bros. Às vezes, é preciso realmente cair de cara no chão para, então, reunir os cacos, sacodir a poeira e dar a volta por cima, como diz a música. É um bom conselho paterno.

Afinal, Batman, como franquia de cinema, caiu e se arrebentou de verdade em 1997 com o lançamento de Batman & Robin, do diretor Joel Schumacher. Apesar de não ter dado um grande prejuízo financeiro ao estúdio, o longa foi ridicularizado no mundo todo pela sua história abobalhada, pelo tom exagerado e mais do que um pouco homoerótico, além de ser basicamente uma versão para a tela grande da série cômica de TV dos anos 1960.

O filme matou as carreiras de Alicia Silverstone e Chris O’Donnell, astros em ascensão na época, e teria feito o mesmo com as de George Clooney e Uma Thurman, não fossem os salvadores Steven Soderbergh e Quentin Tarantino, respectivamente. Já Schumacher passaria o resto da vida pedindo desculpas pelo filme. Por consequência, a Warner fechou a Batcaverna por alguns anos.

RECOMEÇO COM NOME IMPROVÁVEL

Porém, heróis apanham e caem, mas nunca morrem. Pouco depois, foram criações da Marvel Comics, editora que nunca tinha se dado bem no cinema, que começaram a retomada do filme de super-herói: primeiro foi Blade: O Caçador de Vampiros (1998), depois veio X-Men: O Filme (2000). Mas o impacto negativo de Batman & Robin fora tão grande que essas produções tiveram vergonha de se ligar às suas origens nas HQs, com receio de espantar o público – o trailer de Blade nem mencionava que o personagem vinha de uma HQ obscura da Marvel. Só Homem-Aranha (2002), alguns anos depois, voltaria a abraçar sem pudor o espírito dos quadrinhos e o público respondeu. A nova era do cinema super-heróico estava começando.

Nesse meio tempo, a Warner até tentou revitalizar seus heróis: outra vítima de Batman & Robin foi o estranhíssimo projeto Superman Lives, abortado pelo estúdio e que seria dirigido por Tim Burton e estrelado por Nicolas Cage. A Warner também ofereceu Batman aos, na época, irmãos Wachowskis, que estavam ocupados com as sequências de Matrix (1999), e a Darren Aronofsky (“Cisne Negro”), que tinha umas ideias meio estranhas do que fazer com o personagem, mas nada saiu do papel. A propriedade Batman era, ao mesmo tempo, uma mina de ouro e uma batata quente, e ninguém sabia muito bem o que fazer com ela.

Foi quando entrou em cena o cineasta inglês Christopher Nolan. Vindo do cinema independente, ele já tinha chamado atenção com Amnésia (2000) – foi indicado ao Oscar de roteiro original – e feito um filme para a Warner, o suspense Insônia (2002), com os astros Al Pacino e Robin Williams. Nada no currículo dele até então sugeria que Nolan podia fazer um filme grandioso ou que entendesse de HQs. Mas, de fato, Nolan conhecia Batman e gostava do personagem. Ele propôs ao estúdio recomeçar do zero e a Warner topou. Era a decisão lógica, e em retrospecto, a única viável.

FOCO EM BRUCE WAYNE

Nolan realmente voltou ao zero, ao início de tudo. Resolveu contar a origem do Homem-Morcego, o que nunca tinha sido feito em filme e nem nas HQs era assim tão bem definida. E a inspiração veio de dentro de casa, da própria Warner: como uma criança dos anos 1970 e 1980, ele cresceu com Superman: O Filme (1978), de Richard Donner, ainda a pedra fundamental do cinema de super-herói. O filme do Homem de Aço inspiraria Batman Begins em vários aspectos: no tom épico, na escalação do elenco, e principalmente com o conceito de “verossimilhança”, o mantra de Donner durante a produção.

Essa é uma distinção interessante: o Batman de Nolan nunca foi “realista” como dizem por aí. É verossímil. Assim como em Superman, o público acredita que um homem pode voar e que outro se veste de morcego, porque todos os elementos fantásticos da narrativa são fundamentados, vêm de algo real e concreto ou de uma emoção reconhecível e humana.

O roteiro de Nolan e de David Goyer, bastante inspirado pela HQ Batman: Ano Um de Frank Miller, conta a trajetória de Bruce Wayne (um fenomenal Christian Bale), que perde seus pais em um assalto banal em um beco de Gotham City durante a infância e, então, decide livrar a cidade do mal que os levou. Depois o vemos treinar na Ásia – Batman Begins é praticamente o melhor filme de ninja de todos os tempos – e, ao voltar à sua cidade, Wayne assume o papel de vigilante que mete medo no coração dos criminosos. É o primeiro filme do Batman, em toda a história do personagem no cinema, que é sobre ele, não sobre o vilão da vez. Pela primeira vez, temos um filme orientado ao personagem, não à trama maluca da ocasião.

SÉRIO, PERO NO MUCHO

Alguns podem argumentar que Nolan levou o personagem a sério demais. Eu discordo: acho que é o filme do Batman que o mundo e os fãs do herói precisavam em sintonia com as tensões da época. Afinal, é interessante notar que os grandes vilões da trilogia de Nolan são terroristas. Neste, é o terrorista externo – a Liga das Sombras comandada por Ducard (Liam Neeson, muito bom), com a ajuda do malucão Jonathan Crane, o Espantalho (Cillian Murphy).

E Batman Begins, no fim das contas, não é tão sério assim. Afinal, o plano dos vilões de evaporar água não faz sentido e é a típica “ciência de filme”, e embora a Gotham de Nolan ainda seja um lugar real, sem neon ou catedrais góticas – Chicago foi usada como principal locação – ainda há, ao menos, uma herança “burtoniana” aqui, um gigantesco trem elevado onde ocorre o clímax.

Enfim, não há como chamar de realista uma produção em que um sujeito se veste de morcego para combater o crime. Era possível, entretanto, acreditar em Batman Begins. De repente, adultos podiam sair do cinema sem rir de um filme baseado em HQs e conversar sobre como tal história podia acontecer no nosso mundo. O cineasta deve ser o primeiro a acreditar no que está contando; se esta máxima é verdadeira no cinema, então o grande feito de Christopher Nolan foi crer no Batman e na maneira como ele o apresentou a nós.

BOND: DE INFLUÊNCIA A INFLUENCIADO

Batman Begins também é um filme muito rico visualmente.  Percebe-se que a Warner acreditou na visão de Nolan e deixou um filme do Batman sair de verdade fechado do estúdio pela primeira vez. As imagens que o diretor de fotografia Wally Pfister capta das paisagens na Islândia ou na Inglaterra são de tirar o fôlego. Gotham é rica aqui, com o ecossistema de mafiosos, tiras e gente comum bem delineado. E a primeira aparição do herói – com uma hora de filme já transcorrido, assim como em Superman – praticamente transforma o Batman numa figura de um slasher film, sumindo nas sombras e aparecendo apenas em alguns breves planos, até a sua revelação. Imagens como a de Bruce rodeado por morcegos na caverna ou vistoriando a cidade do alto, como uma gárgula, grudam na memória e trazem um sorriso a qualquer fã do herói ou do cinema fantástico.

Há ainda uma forte influência de James Bond no Batman de Nolan. O personagem Lucius Fox, interpretado por Morgan Freeman, é praticamente o “Q”, fornecendo engenhocas e equipamentos para Bruce Wayne – todos apresentados de maneira crível, de acordo com a filosofia do filme, incluindo o novo Batmóvel, um tanque de guerra não tão diferente daquele de O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. Enfim, muitos filmes de Bond buscaram esse equilíbrio entre a fantasia e a verossimilhança, e Nolan seguiu a deixa deles.

O resultado foi um longa que apagou as más lembranças e as bobagens do passado. Claro, hoje em dia todo mundo brinca com a voz do Bat-Bale – aqui ela não incomoda tanto – mas, mesmo nisso, nota-se um carinho para com esta encarnação do herói em particular. Batman Begins é um perfeito exemplar do artesanato hollywoodiano, um tipo de produção que, à época, a indústria parecia ter deixado um pouco de lado.

O filme é narrado com calma e de forma orgânica, mesmo sendo cheio de flashbacks no início; há poucos efeitos de computação gráfica, e o elenco estelar faz boa parte do trabalho pesado do investimento na história. Além de Bale, Neeson e Murphy, também estão fantásticos Gary Oldman como Gordon e Michael Caine como Alfred. O elo fraco acaba sendo Katie Holmes como Rachel Dawes, mas é menos por causa da atriz e mais pelo fato dela ter sido mal escalada – ela parece jovem demais para ser assistente da promotoria de Gotham.

A produção também peca nas cenas de ação – as lutas em Batman Begins são, em sua maior parte, um horror, pois parece que nem Nolan nem seu montador Lee Smith souberam mostrá-las direito, transformando-as num borrão de planos confusos e câmera tremida. Só recentemente Nolan se tornou de fato um bom visualizador de ação, mas é uma pena que, num filme do Batman, as cenas de luta ainda pequem como aqui.

Nada disso, porém, tira o brilho do filme, que em 2005 ressuscitou uma propriedade e um personagem que pareciam mortos, e de quebra deu uma lição a Hollywood que a indústria ainda está assimilando – os produtores de Bond aprenderam mais rápido, pois é notória a influência de Batman Begins no reboot 007: Cassino Royale, lançado um ano depois. Se Nolan tivesse feito apenas este aqui, já mereceria o respeito de todos os bat-fãs e espectadores de cinema do mundo inteiro. Afinal, com ele Batman reinventou-se e se levantou, orgulhoso. Só isso já foi uma proeza.

Mas como sabemos hoje, outras viriam.

CRÍTICA | ‘Deadpool & Wolverine’: filme careta fingindo ser ousado

Assistir “Deadpool & Wolverine” me fez lembrar da minha bisavó. Convivi com Dona Leontina, nascida no início do século XX antes mesmo do naufrágio do Titanic, até os meus 12, 13 anos. Minha brincadeira preferida com ela era soltar um sonoro palavrão do nada....

CRÍTICA | ‘O Sequestro do Papa’: monotonia domina história chocante da Igreja Católica

Marco Bellochio sempre foi um diretor de uma nota só. Isso não é necessariamente um problema, como Tom Jobim já nos ensinou. Pegue “O Monstro na Primeira Página”, de 1972, por exemplo: acusar o diretor de ser maniqueísta no seu modo de condenar as táticas...

CRÍTICA | ‘A Filha do Pescador’: a dura travessia pela reconexão dos afetos

Quanto vale o preço de um perdão, aceitação e redescoberta? Para Edgar De Luque Jácome bastam apenas 80 minutos. Estreando na direção, o colombiano submerge na relação entre pai e filha, preconceitos e destemperança em “A Filha do Pescador”. Totalmente ilhado no seu...

CRÍTICA | ‘Tudo em Família’: é ruim, mas, é bom

Adoro esse ofício de “crítico”, coloco em aspas porque me parece algo muito pomposo, quase elitista e não gosto de estar nesta posição. Encaro como um trabalho prazeroso, apesar das bombas que somos obrigados a ver e tentar elaborar algo que se aproveite. Em alguns...

CRÍTICA | ‘Megalópolis’: no cinema de Coppola, o fim é apenas um detalhe

Se ser artista é contrariar o tempo, quem melhor para falar sobre isso do que Francis Ford Coppola? É tentador não jogar a palavra “megalomaníaco” em um texto sobre "Megalópolis". Sim, é uma aliteração irresistível, mas que não arranha nem a superfície da reflexão de...

CRÍTICA | ‘Twisters’: senso de perigo cresce em sequência superior ao original

Quando, logo na primeira cena, um tornado começa a matar, um a um, a equipe de adolescentes metidos a cientistas comandada por Kate (Daisy Edgar-Jones) como um vilão de filme slasher, fica claro que estamos diante de algo diferente do “Twister” de 1996. Leia-se: um...

CRÍTICA | ‘In a Violent Nature’: tentativa (quase) boa de desconstrução do Slasher

O slasher é um dos subgêneros mais fáceis de se identificar dentro do cinema de terror. Caracterizado por um assassino geralmente mascarado que persegue e mata suas vítimas, frequentemente adolescentes ou jovens adultos, esses filmes seguem uma fórmula bem definida....

CRÍTICA | ‘MaXXXine’: mais estilo que substância

A atriz Mia Goth e o diretor Ti West estabeleceram uma daquelas parcerias especiais e incríveis do cinema quando fizeram X: A Marca da Morte (2021): o que era para ser um terror despretensioso que homenagearia o cinema slasher e também o seu primo mal visto, o pornô,...

CRÍTICA | ‘Salão de baile’: documentário enciclopédico sobre Ballroom transcende padrão pelo conteúdo

Documentários tradicionais e que se fazem de entrevistas alternadas com imagens de arquivo ou de preenchimento sobre o tema normalmente resultam em experiências repetitivas, monótonas e desinteressantes. Mas como a regra principal do cinema é: não tem regra. Salão de...

CRÍTICA | ‘Geração Ciborgue’ e a desconexão social de uma geração

Kai cria um implante externo na têmpora que permite, por vibrações e por uma conexão a sensores de órbita, “ouvir” cada raio cósmico e tempestade solar que atinge o planeta Terra. Ao seu lado, outros tem aparatos similares que permitem a conversão de cor em som. De...