Laços familiares não são tão fáceis de lidar como aparenta ser; há muitas camadas e complexidades que estão para além do elo e do sangue. Os sentimentos envolvidos são muitos e todos se condensam nessa liquidificação que a vida nos coloca. Então, quando acontece uma ruptura drástica das mais inevitáveis, como recuperar o que foi perdido e remontar o vaso quebrado que, parcialmente intacto, têm seus cacos que não se encaixam e que de tão quebrados, não tem como uni-los?

Não sei se essa foi uma questão pensada no subconsciente de Marcos Yoshi, mas “Bem-Vindos de Novo”, aparenta ser como esse vaso e ele, Marcos (o filho, o irmão, o diretor) estivesse na tentativa do tal encaixe.  Muito íntimo e pessoal, é um documentário exaustivo.

E, não me entendam mal. Não é exaustivo por sua qualidade ou narrativa: a exaustão em questão é mental, principalmente, para quem, como eu, viveu e ainda vive com traumas de separação e recomeços quase que anuais para continuar em uma meta de vida boa e aventurada (e bem-sucedida) por conta do capitalismo. Sim, em momento algum essa palavra é citada, mas toda a problemática que correu à família Yoshi está atrelada ao lucro e meios de vida vendidos como unicamente merecedores aquela em que a pessoa trabalha até o fim dos dias para ter o mínimo, o básico. E isso mexeu comigo.

É nítido que o lucro vendido pelo capital mexe com toda a estrutura familiar. Em certo momento de “Bem-Vindos de Novo”, Yoshi (em sua maioria em voz em off, um pouco repetitivo), fala da crise de 1999 que levou os pais a tomarem uma atitude drástica: fechar a loja que tinham para morar/trabalhar no Japão por dois anos. E as crises sempre acompanharam a família brasileira, né? A gente lembra de momentos de nossas vidas interligadas nas crises, uma parte lamentável de nossa sociedade.

DORES ATRAVESSADAS

O problema que esses dois anos se tornam 13 longos anos. Pais e filhos (Yoshi têm mais duas outras irmãs), nunca se viram neste tempo inteiro, senão por vídeos, fotos e telefonemas. Não viram os filhos crescerem, não viram o desenvolvimento da adolescência, uma fase complicada e a transição para a vida adulta. A vida simplesmente seguiu.

Yoshi fala em determinado momento que a saudade ficou algo secundário – “órfão de pais vivos”, para ser mais exato. Desta forma, eles deixaram de ser importantes, talvez. Não por falta de amor, carinho, mas, pela existência em si, a convivência e eu me senti completamente atravessado com isso. Quando minha mãe decide vir morar em Manaus, eu já adolescente e uma irmã ainda criança em 2003, seriam apenas seis meses ou um ano para renovar a vida e atrás do sonho – olha lá, do lucro uma vez que estávamos falidos. Já se passaram 20 anos e ainda não voltamos. Aqui nos estabelecemos, nunca mais vi meus parentes, amigos, meu pai. E isso, por muito tempo doía, hoje é completamente… Enfim. Vocês entenderam.

E a dor da mudança, da distância, está estampada no corpo e na mente dos seus pais, Roberto Shinhti Yoshisaki e Yayoko Yoshisaki. Os problemas de saúde dele, as mãos calejadas e quase deformadas da mãe são momentos fortes. Mesmo que não se fale em saúde mental, volto quando digo que “Bem-Vindos de Novo” é um filme exaustivo, pesa na mente a preocupação que senti com Sr. Roberto, um homem, um senhor completamente devastado pelo tempo e pelas experiências de uma vida operária (12 horas de trabalho manual no Japão, seis dias da semana!) para, no fim, se sentir um fracassado como ele diz. Sacrifícios e sacrifícios que tornam a vida mais pesada. Conheço muito bem, muitas famílias brasileiras conhecem isso muito bem e sabemos o quanto é doloroso.

RECONSTRUINDO VASOS QUEBRADOS

E quem são os filhos? Quem são os pais? Eles não se conhecem, tem conexão, mas há um desconforto ensurdecedor entre eles. Não os culpo. Os sacríficos são ancestrais, vem de antes da gente, como ele mostra a saga do seu avô ao chegar ao Brasil para construir algo próspero.

A melhor cena de “Bem-Vindos de Novo” é quando Yoshi pede para colocar a mão na cabeça do pai. É potente, triste, emocionante, como se estivessem reconstruindo aquele vaso quebrado mesmo com os cacos faltantes. Há outro momento bem tocante entre Yoshi e suas irmãs, uma delas grávidas, eles zelando a barriga como se fosse uma promessa que com ela seria diferente.

Ao final, Yoshi explica que a família foi apenas uma de muitas a viver sob o fenômeno Dekasseguis, basicamente a evasão das famílias que saem do Brasil para o Japão em busca de oportunidades de vida. A palavra, inclusive, significa trabalhar fora de casa. E esse é um fenômeno que se arrasta de gerações para gerações no Brasil: uns vão, outros vem, outros permanecem, outros voltam. Todos em busca da tão sonhada vida próspera, confortável, e é completamente plausível. Mas a custo de quê?