“Eu sempre dependi da bondade de estranhos”, declama Blanche DuBois após um surto. Blanche DuBois é uma personagem fictícia saída da peça, “Um Bonde Chamado Desejo” (1947) de Tennessee Williams que, no cinema, ficou famosa pela força em cena de Vivien Leigh, lhe garantindo seu segundo Oscar de melhor atriz em 1951.

Blanche DuBois é uma personagem complexa, difícil e que leva a qualquer atriz além dos limites de suas entranhas e seus domínios cênicos. Blanche é uma mulher atormentada, solitária e assombrada por um passado doloroso e um presente inóspito e desconhecido, busca por uma compreensão de si, mas ela mesma não sabe de si a não ser o que inventou de sua persona. A frase que abre esse texto ilustra a sua posição: uma mulher emocionalmente instável, em um mundo patriarcal, misógino em que as mulheres não tinham outra opção que depender, isto é, ser obrigada, de algum homem que lhe sustentasse, financeiramente, emocionalmente (principalmente), etc. A mulher não detinha o poder de suas narrativas e desejos, eis o pecado original que levou Blanche ao declínio, seu desejo. Estava viva, afinal, mas de alguma forma, os homens e a sociedade machista, tiraram a sua vivacidade.

Em um ambiente hostil, que delimitava a posição da mulher, de certa forma, elas tinham que reinventar a si mesmas. Assim como Blanche DuBois, Norma Desmond, personagem de “O Crepúsculo dos Deuses” (1950), também sucumbe ao peso dos anos, ao passado de glória, ao presente em ostracismo, mas que, para continuar suportando as dores, viveu em um tempo só dela.

E eis que chegamos em “Blonde” de Andrew Dominik “O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford” (2007), filme livremente inspirado no romance homônimo de Joyce Carol Oates lançado em 2000. Assim como o livro, o filme imagina, logo, INVENTA a vida da pequena Norma Jeane até o mito Marilyn Monroe. Ou seja, a Marilyn Monroe que vemos em tela é a personagem, a invenção dela, mais uma vez, sobre a ótica do outro.

É sabido que a vida de Marilyn não foi fácil e até o seu derradeiro fim houve diversas situações que podem ser consideradas reais ou não, pois o mito acerca dele envolve também o mito acerca de suas escolhas, pessoas, situações e ações. Quem é Norma Jeane? Quem é Marilyn Monroe? Uma pergunta sem resposta, pois o que se sabe é o que ela inventou de si para sobreviver e o que inventaram dela para lucrar e, neste segundo caso, é o que está no imaginário coletivo.

“Blonde” é mais um exemplo de um filme que desrespeita a memória da atriz. O filme não tem roteiro a não ser a Marilyn Monroe sofrida, explorada, solitária, abusando dos escapismos para sobreviver em meio aos leões, aos homens e ao poder deles sobre ela. Assim como Blanche e Norma, Marilyn, a personagem, dependia de estranhos. Estranhos enquanto pessoas que confiava, mas que ela nunca conheceu de fato, meras ilusões.

ANTÍTESE DE UMA HOMENAGEM

O antropólogo Ernest Goffman teoriza em muitas obras suas, especialmente em “A representação do eu na vida cotidiana” (1985) a sociedade como um teatro, como se todas as nossas ações fossem fictícias, somos personagens sociais com ações como um ato teatralizado, em linhas gerais. Os mecanismos do elo dominante detêm e condicionam esses atos, eles são os maestros, diretores, afinal. Obedecemos ao líder!

E é nesse contexto que a Marilyn Monroe, novamente, a personagem, se enquadra. Ela não tinha vida senão estar sempre pré-disposta a agradar para ser aceita. Os seus dramas familiares com a mãe e a ausência do pai lhe fez uma pessoa insegura, frágil que precisava de alguma forma atuar para existir, inventando a si mesma a exemplo de Blanche e Norma.

O fato dela chamar os homens de sua vida de “daddy” para exemplificar essa possível angústia de um pai ausente é de um mau gosto inominável. Mas é isso sempre aconteceu na vida de Marilyn, a verdadeira, não era levada à sério por muita gente em vida e depois de sua morte o desrespeito por seu legado só aumentou.

“Blonde” é a antítese de uma homenagem. É doloroso ver a atriz vista dessa forma erotizada por Dominik. Aliás, até que ponto ele queria falar de Marilyn ou explorar Ana de Armas? Parece que o diretor estava fascinado pela atriz e não pela personagem, mais uma vez, a prova como o machismo está intrinsecamente e (in)conscientemente edificado na estrutura social. Uma das mulheres mais famosas do mundo que mais foi vítima de machismo e sexualização do seu corpo continua sendo na pele de outras.

SEM FAZER JUS À MONROE

Se não fosse a excelente fotografia em transição colorida e preto e branco de Chayse Irvin, a trilha sonora da dupla Nick Cave e Warren Ellis e a excelente atuação de Ana de Armas tentando extrair alguma dignidade dessa personagem tão bruta e não lapidada “Blonde” seria um completo fiasco.

Blanche DuBois em uma cena vocifera: “eu não quero realismo. Eu quero a magia. Sim, sim, magia. Tento dar isso às pessoas. Eu deturpo as coisas. Eu não digo as verdades. Eu digo o que deveria ser verdade” e essa é a Marilyn Monroe fictícia, no breu de um universo paralelo entre a realidade e o devaneio para sobreviver, inventando a si para reconstruir os cacos, a vítima indefesa, a sua tentativa para ser aceita e amada. Até que ponto essa magia que ela buscava é verdade? Nunca saberemos, mas “Blonde”, certamente não faz jus a Marilyn Monroe, a real, a inventada por Norma Jeane, a estrela, a eterna, o mito!