A tênue fronteira entre documentário e ficção se torna ainda mais estreita com a premissa inusitada de Branco Sai, Preto Fica. Tomando como ponto de partida um fato real – a invasão truculenta da polícia em um baile de black music na Ceilândia, periferia de Brasília –, o diretor Adirley Queirós constrói um híbrido em que passado, presente e até o futuro se misturam de maneira inesperada.

“Puta de um lado, veado do outro. Quem é branco, sai. Preto fica”. O título do longa se refere à frase proferida por um dos policiais durante a tal invasão ao baile do Quarentão, em 1986, e relembrada logo no começo do filme por Marquim do Tropa, um dos personagens-atores que acompanharemos no decorrer do longa. Marquim e Shockito são negros, moradores da periferia, e deficientes físicos: o primeiro sofreu um tiro durante o atentado, o que o obrigou a usar uma cadeira de rodas desde então; o segundo usa uma prótese no lugar da perna perdida após ser pisoteado pela cavalaria. Na trama, os dois usam suas próprias experiências para dar vida a outros personagens, com o mesmo nome e o mesmo passado, em um contexto peculiar.

A fala inicial de Marquim problematiza de cara a temática de Branco Sai, Preto Fica: a questão do racismo no Brasil, e o isolamento social velado dos negros da periferia versus uma classe média e alta pouco preocupada com o apartheid não-declarado entre as camadas sociais. A ousadia de Adirley, porém, é tratar do assunto numa estrutura ficcional do início ao fim – e até mesmo os eventuais depoimentos em off podem contradizer o que pensamos saber sobre os atores/entrevistados.

Presente pós-apocalíptico

A encenação em si não é exatamente uma novidade – Nanook, o Esquimó (1922), de Robert Flaherty já recorria a esse artifício –, mas Queirós se utiliza do recurso para tentar criar uma narrativa que flutua no tempo e espaço. Em Branco Sai, Preto Fica, o diretor brinca com a estrutura da trama ao colocar em cena a figura de Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), como um viajante do tempo que vem do futuro para coletar provas da culpa do Estado brasileiro nas atrocidades cometidas contra a população negra e marginalizada.

Assim, o documentário ganha ares de ficção científica: o distanciamento social entre a periferia e o centro fica explícito, por exemplo, no passaporte exigido para “migrações intra-distritais” pela “Polícia do Bem-Estar Social”, no maior estilo orwelliano. Mensagens do futuro enviadas a Cravalanças indicam uma perspectiva sinistra, com uma “vanguarda religiosa” no poder – o que, considerando o cenário atual, não parece tão distópico assim. Além disso, a solidão e o sufocamento dos personagens são reforçados por conjuntos de planos fixos que os mostram sempre em lugares fechados e claustrofóbicos, cercados de ferrugem ou atrás das grades, ou então em espaços amplos e desertos, que poderiam muito bem ter saído de uma distopia pós-apocalíptica à lá Mad Max. Todos esses elementos são reunidos por Queirós em busca de tecer sua crítica social de maneira que fuja à convencional, como o próprio cineasta bem frisa em entrevistas sobre o longa.

“Da nossa memória fabulamos nóis mesmos”

Crítica: Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós

Assim como a ambiguidade documentário-ficção que cerca o filme, a frase que encerra o epílogo de Branco Sai, Preto Fica representa, ao mesmo tempo, sua maior virtude e seu maior problema. Se tudo o que foi dito até o momento pode ser interpretado como qualidades e ousadias inegáveis do filme, a estrutura arrojada da fábula conduzida por Queirós acaba minando seu próprio objetivo.

Para um filme que se propõe como denúncia, a verdade é que Branco Sai… não se aprofunda nunca em nenhuma das questões que levanta, apenas arranhando a superfície de todo um mosaico social. Por outro lado, é importante por se tratar de uma produção que vem do seio da própria periferia, como uma resposta e uma espécie de vingança, visto que é o lugar de origem do elenco e do próprio Queirós, ex-jogador de futebol criado na Ceilândia. Não à toa a bomba que Marquim e Shockito se unem para construir é uma bomba de cultura afro e popular, que mistura hip-hop ao forró rasgado da “dança do jumento”. É uma cultura de resistência, que o filme também quer representar.

Ao mesmo tempo, porém, é sintomático que o filme não seja suficiente em si mesmo para abordar o que pretende. É necessário recorrer a entrevistas com o realizador para compreender exatamente o episódio do Quarentão a que o longa se refere, por exemplo. E, apesar da ficção construída, curiosamente, os momentos que criam mais empatia com os personagens e nos fazem entender um pouco mais sobre todo o contexto deles são os mais convencionais, em que Marquim e Shockito dão entrevistas direcionadas sobre o atentado que sofreram. Embora a premissa da ficção científica seja interessante, Queirós não consegue dar ritmo ao filme, e Branco Sai… em muitos momentos corre o risco de provocar desinteresse e causar pura e simplesmente sono. Basta dizer que, durante todo o primeiro ato, a todo momento, Marquim e Shockito parecem estar sempre sendo apresentados ao espectador, em um loop infinito.

No fim das contas, a ideia por trás de Branco Sai, Preto Fica acaba parecendo melhor que o resultado. O trabalho de Adirley Queirós é digno de elogios por pensar “fora da caixa”, e, se não mencionei até agora, um belo exemplo disso é o ótimo desenho de som, à altura de O Som ao Redor – e que catalisa a interessante sequência final, em que um atentado a Brasília se dá inteiramente através de storyboards, numa solução criativa para lidar com limitações de orçamento. É uma pena, portanto, que o discurso perca força com problemas de direção, ritmo e a falta de um roteiro mais claro. Nem sempre ousadia é o suficiente.