“Quando amamos alguém o amor não some completamente”. 

Parece piegas soltar essa frase, mas quando o subtexto por trás dela é escrito e filmado por uma cineasta da estirpe de Claire Denis, o domínio que ela tem da linguagem e a certeza do que quer atingir fazem toda a diferença. E o que recebemos “Com Amor e Fúria” é um filme denso, tenso e absolutamente magnético. E finalmente chega até o público doméstico, após estreia no festival de Berlim, na Mostra de SP. 

Boa parte do magnetismo reside na direção, na maneira com que o castelo de cartas de um relacionamento é meticulosamente construído com fragilidades e nas interações entre Juliette Binoche e Vincent Lindon. Dois dos maiores intérpretes do mundo, não só do cinema francês, eles são Jean e Sara que estão juntos há dez anos em uma harmonia aparentemente absoluta. 

A agudeza da dor romântica ocupa várias linhas de expressão do rosto real de La Binoche. Denis utiliza a imagem e a capacidade de sua atriz, com a qual já faz o terceiro filme seguido em colaboração – após “High Life” e “Deixe a Luz do Sol Entrar” -, para escrever na face a narrativa visual das sensações, pensamentos e emoções de uma mulher que faz sempre o que dela se espera. 

E ela está lá, como uma mulher bem casada, radialista, usando pouquíssima maquiagem (e em muitas cenas, de cara limpa), com uma beleza e um je ne sais quoi eternos. Mas ela sofre. Apesar de amar Jean, falta algo em sua vida. E “Com Amor e Fúria” vai revelando que mesmo sendo plenamente apaixonado, Jean não é um príncipe. Lindon (de “Titane”) também está capturando em toda a sua doçura e angústia por Denis, trazendo grande humanidade ao homem que foi preso, tem um filho adolescente negro e com o qual não consegue se relacionar, tem uma tempestade dentro de si que a qualquer momento pode irromper. 

Relacionamento à francesa 

A progressão do enredo de “Com Amor e Fúria” é convencional na forma, mas nem por isso menos transgressora no que contém. O retorno de François (Grégoire Colin) cria ranhuras na realidade do casal. Amigo íntimo de ambos, ex de Sara, ele é o incidente mais do que excitante, que provoca situações em que o delicado equilíbrio – que na verdade, era apenas superficial – se parte. Denis revisita aquilo que é quase um gênero cinematográfico francês por excelência, o drama/romance de casal, que é ainda um extrato cultural sintomático de como franceses lidam com monogamia, casamento e fidelidade indo de clássicos como “Beijos Proibidos”, “Le Bonheur”, “A Mãe e a Puta” até “Quem Você Pensa que eu Sou” (com a própria Binoche). 

Super closes, closes demorados, cirúrgicos, escalonam a tensão seja na cama ou em outros espaços de convivência do casal no apartamento minimalista, de tona cinzas e esbranquiçados. Transam, brigam, se reconciliam e caminham rumo ao precipício que se agita e se agiganta com ligações furtivas na madrugada, encontros às escondidas e deslealdades cometidas. 

Em oposição as tonalidades quentes de “Deixe a Luz do Sol Entrar”, Éric Gautier trabalha com tons frios em uma fotografia que dá a impressão de estar nublada (como também está o passado dos personagens) constantemente; mudando o foco para ocultar certos aspectos do que está no quadro fazendo o jogo de esconder e revelar. A música de Tindersticks acentua o drama e constrói o clima adequado a Com Amor e Fúria de maneira econômica. 

Buscando ser livre 

Inspirada no romance de Cristine Angot (que também colabora no roteiro), Denis introduz ainda no seu subtexto uma sutil crítica ao racismo e estratificação asséptica da sociedade francesa. Binoche/Sara entrevista o brilhante escritor e ex-futebolista Lilian Thuram, que fala que o racismo é um problema psiquiátrico. A cena monta perfeitamente com outra onde Jean/Lindon faz reprimendas ao filho Marcus e diz que ele será aquele que irá limpar privadas pro resto da vida se não seguir seus conselhos. 

Quando a tensão se torna trágica e a angústia se instala no domicílio conjugal, uma tour de force se instala em “Com Amor e Fúria”. Lindon/Jean profere sentenças como “Já sei viver sem o amor de alguém” e Sara/Binoche não se retrata (afinal, ninguém trai sozinho e traição implica também em trair a si, mas também fazendo descobertas sobre si), concluindo que nunca foi livre de verdade. 

François catalisa algo que estava adormecido mas, mesmo que não fosse essa a intenção, a função dramática do personagem impulsiona os personagens Sara e Jean. E Denis faz uma obra-prima que é um estudo sobre amor, remissão e incontidos desejos que desnudam verdades – que de outra forma, permaneceriam encobertas. 

Em entrevista à Variety, Binoche considerou a experiência de fazer “Com Amor e Fúria” emocionalmente desgastante sim mas com muita eletricidade, paixão e entrega que se materializa no filme. E ela completa que se entrega à direção de Denis porque a cineasta tem uma paixão dedicada as atrizes, as filma com desejo e empolgação, bem de perto e de um jeito que faz com que Binoche se sinta segura. Inclusive para andar sozinha, à noite, pela rua, livre e desimpedida.