O público estava inquieto na sessão em que fui – hostil, até. Duas pessoas na minha fileira riam em voz alta de cenas que, a princípio, nada tinham de cômicas. O papo rolava solto entre os assentos. Um número considerável de pessoas debandou da sala ao longo da breve projeção.

Agora, verdade seja dita: o público de Botafogo, constituído em boa parte por uma velharada branca no mínimo complicada, é, justamente, complicado. Mas desta vez, eu dou o braço a torcer: “A Filha do Caos” tem um jeitinho todo seu de nos torrar a paciência.

E, no entanto, sinto algo próximo a afeição pelo filme. Não, não acho que o assistirei novamente em breve. Mas o granulado das suas imagens, a estranheza de seus sons, a brancura estourada na cara de Bruna Spínola, estrela do filme: tudo isso nos parece, a princípio, sinais promissores de uma experiência que “A Filha do Caos” nunca concretiza.

Em outras palavras: o filme não só não estimula, como (mais importante) não parece saber criar o espaço necessário para que nós nos estimulemos – para que possamos embarcar na sua. Sobram apenas imagens ricocheteando no vazio.

No vazio do apartamento

Pena, porque os primeiros planos – nos quais vemos Spínola escovando os dentes, tão próxima à câmera que pude contar as bolhas de saliva que se formavam em sua boca – parecem indicar o contrário. Com uma câmera na mão entre o desnorteante e o registro doméstico, acompanhamos uma atriz que se prepara para viver a Jocasta de “Édipo Rei”. Mas algo nesse papel a perturba. Algo na sua breve experiência como mãe, antes de perder o bebê ainda na barriga, a persegue. Algo na sua condição de mulher a assombra.

Agora, seja lá o que está sendo dito sobre a condição feminina, eu não me importo – e eu não me importo porque “A Filha do Caos” não faz com que eu me importe. Não é de meu interesse decifrar nada – novamente, eu prefiro ter uma experiência.

Um exemplo: o bebê morto é aludido, em dado momento, como “pequeno demônio”. Bom, todas essas ideias sobre mal-estar materno são coisas interessantes que o filme mais sugere do que materializa – ou que prefere materializar sob a efígie de cifras que simplesmente não são tão interessantes assim. E isso parece um desperdício.

A gente sabe de onde o diretor Juan Posada está partindo. Vislumbres de um “De Olhos Bem Fechados” aqui, um pouco da verve “terror de apartamento” do Polanski ali. Mas ele não parece ter nada de interessante para fazer nem com essas imagens, nem com as referências judaico-cristãs que emprega.

O resultado? Uma porção de signos artístico-religiosos em uma ciranda na escuridão – que, verdade seja dita, é uma frase que faz “A Filha do Caos” parecer bem melhor do que é.