Crenças podem ser agentes perigosos, com potencial tanto para opressões quanto para revoluções. É neste ponto nevrálgico que “The Wonder”, novo filme de Sebastián Lelio (“Uma Mulher Fantástica”), quer (e consegue) tocar. O longa, exibido no Festival de Londres deste ano, estreia no serviço de streaming Netflix em novembro. Envolvente apesar de lento, ele se veste como um drama de época, mas se comporta como um thriller. 
 
O centro de “The Wonder” é Lib Wright (Florence Pugh), uma inglesa do século XIX com uma missão inusitada: observar Anna (Kíla Lord Cassidy), uma menina cujo jejum de mais de quatro meses está sendo tido como milagroso pelos devotos cristãos da vila irlandesa onde mora. Lidando com traumas pessoais e certa hostilidade local, Lib começa a investigar a situação quase sem querer e se vê num conflito de crenças. 
 
O roteiro, co-escrito por Lelio, Alice Birch e Emma Donoghue (e baseado em um livro desta última), pinta seus temas em largos traços. É aos poucos que Lib, contratada apenas como um par de olhos externos, é removida do seu estupor e envolvida pessoalmente com o drama de Anna. 

Em uma terra devastada pela pobreza e pela fome, o milagre é uma narrativa atraente, até mesmo para a cética Lib. Porém, a trama de “The Wonder” ousa perguntar a que (ou a quem) essa narrativa serve. Nas observações do cotidiano daquela isolada família, revelações dão conta de uma opressão moral em que a salvação deve ser buscada a qualquer custo e em que a verdade tem um alto preço.

FÉ RECOMPENSADA 

Troque algumas peças deste tabuleiro e esta história poderia ser sobre uma possessão demoníaca. Aqui, é o fervor religioso – não o Diabo – o grande algoz da inocência. Pela sua abordagem do cristianismo extremista, a produção faz uma excelente sessão dupla com o horror “A Bruxa”. 
 
Nesse contexto, atacar essa crença seria fácil, mas um dos grandes triunfos de Lelio é conectá-la à necessidade humana de histórias. Essa necessidade, ele argumenta, é a mesma que leva aos cinemas. Reforçando essa ideia, “The Wonder” se reconhece como tal em vários momentos, com sets aparecendo e Kitty (Niamh Algar), a irmã de Anna, ocasionalmente quebrando a quarta parede. 
 
Eventualmente, conforme o estado de Anna começa a mudar, ele deixa de ser o centro da questão. Enquanto enfermeira e alguém com uma breve e traumática experiência com a maternidade, um senso de dever liga Lib à garota, levando-a a decisões cada vez mais difíceis. 
 
Para além da riqueza temática, o calcanhar de Aquiles da produção acaba sendo seu ritmo bastante lento. Vários dos 103 minutos de projeção se arrastam, com a trama levando muito tempo para chegar a lugares já imaginados pelo público. “The Wonder” deve testar a paciência do público da Netflix, cercado de distrações em casa. Quem mergulhar de cabeça, no entanto, terá sua fé recompensada.