Digam o que quiserem do Judas Iscariotes, mas ele é o personagem mais interessante da Bíblia – do ponto de vista dramático, claro. Porque drama é conflito, e Judas vivia em conflito, e isso faz dele a figura interessante já dramatizada e analisada várias vezes em obras ficcionais. O filme Judas e o Messias Negro, do diretor Shaka King, estabelece o paralelo religioso ao dramatizar a história de uma grande “traíragem” da vida real. É um filme realmente bom, em alguns momentos muito bom, mas não chega a ser ótimo, principalmente porque o seu Judas, a figura análoga à do traidor, não é tão interessante quanto poderia ou deveria ser.
Estamos em 1969, quando os Estados Unidos pareciam um barril de pólvora prestes a explodir graças aos conflitos raciais. A luta pelos direitos civis dos negros já tinha resultado nos assassinatos de Martin Luther King e Malcolm X. Os Panteras Negras prosseguiam como uma organização considerada perigosa ao stablishment branco. O FBI investigava os Panteras Negras, assim como outras organizações de mobilização social, perseguindo suas lideranças. É nesse contexto que surge Bill O’Neal (interpretado por Lakeith Stanfield), um pequeno criminoso cooptado pelo agente do FBI Mitchell (Jesse Plemons) para se infiltrar no grupo e espionar, especialmente, o jovem líder Fred Hampton (Daniel Kaluuya).
Hampton não era uma liderança comum. Claro, ele denunciava o racismo maior e sistêmico, mas também atacava a polícia – que, como sabemos, era e continua sendo extremamente racista nos EUA – assim como denunciava a pobreza e, seu maior crime, o capitalismo. Hampton também conseguia unir diferentes grupos – e gangues urbanas – em prol de sua coalizão: ele seduzia latinos e até mesmo brancos. Numa das cenas mais fortes do filme, o vemos falando de igual para igual com brancos racistas do Sul dos EUA e até convencendo-os a se juntar à coalizão. Isso o tornava uma figura muito perigosa, um verdadeiro messias na opinião do diretor do FBI da época, o nefasto J. Edgar Hoover (Martin Sheen).
Kaluuya como Hampton é a grande qualidade do filme. O ator é magnético e intenso no papel, e quando em cena, a câmera o segue e quase nem prestamos atenção nos outros personagens. A única outra figura do filme que consegue se equiparar é a jovem Dominique Fishback como Deborah, que se torna namorada do líder revolucionário. Fishback tem, ao menos, uma grande cena perto do final do filme, e o romance dos dois se torna realmente comovente graças às belas interações entre ela e Kaluuya.
A FALTA DO PROTAGONISTA
A direção de King imprime ao longa uma inegável energia, com uma bela fotografia sombria de Sean Bobbitt e uma montagem sempre ágil. Também aparecem imagens de arquivo, obtidas de documentários, notadamente no início e no fim. E há algumas cenas realmente fortes, como a do cerco da polícia à sede dos Panteras Negras, ou quando Hoover pergunta ao agente Mitchell sobre “o que aconteceria se a filhinha dele levasse para casa um homem negro”. Plemons também faz um ótimo trabalho nessa cena, vendendo o constrangimento da situação com suas expressões faciais.
Então qual o problema do longa?
Ora, é o próprio Judas da história. Stanfield faz o que pode com o papel que o roteiro lhe dá, mas seu personagem – que é, de fato, o protagonista da história – nunca é desenvolvido para o espectador. “Judas e o Messias Negro” transcorre e o público não aprende quase nada sobre O’Neal, porque ele fingia ser o que não era e o que o motivava. Por que ele mentia, e tão bem? Não fica claro. Ele chegou a acreditar nas ideias de Hampton? Não sabemos ao certo. Além de evitar a cadeia, havia um elemento de subserviência em sua personalidade que o fazia cooperar com o FBI? Também não sabemos.
Hampton é mais desenvolvido e, claro, a atuação de Kaluuya rouba a cena. Mas o filme ganharia muito mais, em drama, se desenvolvesse O’Neal tanto quanto prestou atenção em Hampton. Ele permanece um enigma durante todo o filme. O resultado é um longa sem protagonista, deixando uma sensação de vácuo em alguns momentos, porque uma parte importante do drama não está lá.
Fred Hampton e os Panteras Negras são parte importante da luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos, a organização como um todo ainda é muito mal compreendida, e essa história merecia e precisava ser contada. O filme tem uma mensagem muito forte e atual. Porém, algumas escolhas narrativas fazem com que Judas e o Messias Negro não alcance todo o seu potencial. Ora, se queriam contar a história de Fred Hampton, que contassem a história dele. Contá-la pelo ponto de vista do homem que o traiu poderia ter rendido grande drama e um grande filme. Por isso, é uma pena que o resultado seja apenas um bom filme. É uma pena que tenha faltado um pouco mais de conflito, um pouco mais de delimitação do protagonista nessa história. É uma pena quando filmes se apresentam como pequenas decepções assim, porque sabemos que havia potencial para mais.
Ivanildo,
Que bom que entendemos a motivação de não haver protagonismo do Judas… contudo, creio que a intenção era essa mesma… O foco do enredo não seria mesmo não igualar ambos?
Há algum dia para Antonio Silvério dos Reis? O traidor é coadjuvante dentro da essencialidade de sua existência. É um paradoxo, eu sei; e o clichê “mal necessario” faz presente tb no filme.
Nossa que análise horrível…..Judas o personagem mais interessante da Bíblia? Vivia um conflito? Judas não tem nem uma página toda da Bíblia sobre ele ….Mais tiveram Moisés, Abrão,Davi, José….e afinal..quem sofreu o maior drama …conhecido por “Paixão” foi Cristo…..não Judas….Depois….você generizou toda a polícia americana como racista? Nem os negros policiais escapam…?.. Generalizações são coisas medíocres …Você não acha possivel..que vários policiais Brancos sejam contra o racismo?…