O cartaz e a vinheta da Mostra de SP em 2022 são fruto da criatividade do artista visual e muralista Eduardo Kobra. Entre outros nomes fundamentais da arte urbana, como Banksy e OsGemeos, ele veio deixando sua marca em centenas de murais e obras espalhadas pelas cidades do mundo. Um filme sobre o mesmo não tenderia a tardar e a cineasta que abraça o projeto é Lina Chamie, um às quando se trata de incorporar o urbano à mise en scène, traduzir concreto, ruas, praças, prédios e lugares como veias que correm na narrativa fílmica. E na fluidez do que está sendo contado, a centralidade da trama decorre da câmera que flutua para desenhar o retrato do artista. 

Se em “Via Láctea” de forma contumaz o céu era o refúgio melancólico dos amantes e em “São Silvestre” o chão do asfalto definia o limite daquela experiência sensorial e sobre-humana de desafiar mente e corpo, em seu último filme a cineasta grafita o chão com estrelas, fazendo de “Kobra – Auto Retrato” um filme-diáfano que transforma a luz a partir do que absorve do seu retratado. Seja em matéria, desenho ou palavra, Chamie – que assina também o desenho de som e a montagem – dialoga com seu objeto humano igual uma terapeuta que pratica a hipnose, inclusive envolvendo espectadores em um estado de devaneio que decorre da forma com que fabula a história biográfica e gráfica. 

Kobra é um sujeito extraordinário e o caminho que o documentário toma em mostrar como o talento eclodiu não só em meio às adversidades como a pobreza e a depressão, é mais assertivo e cria uma conexão eficaz com quem assiste. Cada vez que responde às perguntas da cineasta ou conta parte de sua vida, Kobra reconta como se estivesse tentando fixar certas imagens no papel fotográfico da própria memória. Seja as lembranças do primeiro trabalho remunerado como artista no parque de diversões, as divergências com o pai (que também apontavam para um orgulho oculto do filho), os riscos em pichar certos locais que o deixaram em situações-limite até o nascimento de Pedro que apazigua boa parte dos demônios. 

 IDENTIFICAÇÃO COM SÃO PAULO

A câmera de Lauro Escorel, amalgamada da mente febril de Chamie, exprime em cores, mosaicos e fechos luminosos a intimidade do grafiteiro sem precisar apelar para recursos mais simplistas como um excesso de imagens pré-existentes. Os murais ajudam a contar a história, especialmente quando Chamie sinaliza que a trajetória pessoal, artística e estilística reverbera questões como os padrões de estampas que o pai criava e que Kobra reproduz em seus murais coloridos. 

Transitoriedades da vida, entre as sinuosidades das ruas, arranha-céus que inundam a cidade de São Paulo e a arte que risca cada pedaço de prédio, de muro ou viaduto, emprestam lirismo a “Kobra – Auto Retrato”, gerando identificação para paulistanos ou não. A ótica é diferente, mas o que Brett Morgen faz em “Moonage Daydream”, quando ilustra a filosofia artística e pessoal de David Bowie com suas canções, performances e pinturas, ecoa nesse filme de Chamie em cenas em que Kobra fala sobre a importância política e formativa de Basquiat em sua vida, bem como da cultura hip hop, além de como o entendimento sobre o que queria atingir o fez entender a importância de ressoar sua voz pelos muros.  

“Kobra – Auto Retrato” acaba sendo também, ainda que não fosse necessário, mas sem dúvida, sendo uma característica indispensável, um libelo pela arte, pelo ensino e educação por meio da arte que é emancipatória.