Uma imersão cinemática em Imax, transmitida através da galáxia mostrando a vivência de um ser magnífico – homem, mulher, robô o que é isso? – relatando a sua passagem pelo planeta terra no século 20 e como, em 1971, criou o século 21 usando a energia criativa do caos.

Esse ser, desde que tinha 16 anos humanos, esteve determinado a viver a maior aventura que alguém poderia ter. Nascido em Brixton – ou lá deixado por visitantes marcianos -, o jovem Mod que adorava Kerouac e que tinha a pupila esquerda permanentemente dilatada, o que lhe conferia um ar exótico, tem como nome de batismo David Robert Jones. Mas ele se nomeou David Bowie. E “Moonage Daydream” é o tíquete que nos permite passear pelo presente-passado-futuro diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, constatando o imenso prazer que foi dividir um planeta e uma época com ele.

Homem das estrelas

Dividido entre a luz e a escuridão, buscando pela simetria divina, Bowie em pessoa, com sua voz inundando todos os frames, é o guia nessa odisseia audiovisual que perdurará enquanto você for muito velho para perder ou muito jovem para escolher – o tempo irá pacientemente esperar pelo final da canção. O cineasta Brett Morgen já havia dado ao mundo o seminal “Cobain: Montage of Heck” e o fundamental “O Show Não Pode Parar”, estabelecendo a si como um dos grandes autores do documentário biográfico. Em 2007, ele foi até Bowie falar de um projeto – um possível filme híbrido não ficcional que o acompanharia durante 50 dias em seu processo artístico – mas não era o momento certo já que ele estava praticamente aposentado.

Odisseia espacial

“Faça o máximo a cada dia. Não importa o tempo que lhe resta ou o que você gostaria de ter feito, o que você faz da sua vida é o que importa”.

Se parece auto-ajuda não é à toa. Morgen contabiliza muito anos mergulhado no acervo de Bowie, que foi reunido e organizado ao longo de décadas, incluindo um infarto que teve aos 47 anos no meio do processo de feitura do filme que o fez repensar seu ritmo de vida, suas escolhas e teve um impacto massivo na forma que deu a “Moonage Daydream”: “ouvindo as músicas dele eu fui entendendo que não havia sentido em em dedicar 18 horas por dia ao trabalho e deixar meus três filhos para trás. Fui percebendo como viver uma vida plena e satisfatória ainda tendo com esse filme a oportunidade de deixar uma mensagem para os meus filhos”, rememorou o cineasta na coletiva durante o festival de Cannes.

Primeiro projeto cinematográfico apoiado pelo David Bowie Estate o que significou um acesso a um sem número de itens do arquivo pessoal do astro, como desenhos, pinturas, esculturas, diários raros, gravações, filmes, performances inéditas e claro, a utilização das músicas de forma irrestrita. Com um diamante precioso para lapidar em mãos, lamentavelmente algumas coisas escapuliram. A total ausência de Angela Bowie – primeira esposa e uma figura importante, ainda que controversa, nos primórdios da carreira dele -, a apressada passada pela relação de Bowie com o irmão (os Bewlay Brothers), Terry, que teve uma influência tão profunda em sua vida e foi posteriormente diagnosticado com esquizofrenia, não teve tanto destaque quanto merecia/poderia, assim como as parcerias com Mick Ronson, John Lennon, Iggy Pop e Lou Reed mas Morgen deve ter ficado fincado entre escolhas para o filme não terminar com cinco horas de duração. E como o filme teve a anuência da família, nada mais natural dar destaque ao casamento de Bowie com Iman, sua viúva, por exemplo, em detrimento de outras pessoas que impactaram a trajetória estelar dele.

O tempo coloca um cigarro em sua boca

Uma opereta espacial filosófica e personalista acerca do pensamento bowieano, “Moonage Daydream” evoca, nas palavras do próprio, “talvez uma confirmação provisória de que não há de fato começo nem o fim”, intercalando as fases e etapas da carreira do artista com os triunfos e percalços vivenciados pela pessoa (pública ou privada). Se tudo é cíclico, Bowie passou a vida lutando para compreender, decifrar um mistério profundo e deixar sua marca nesse planeta. De Crowley a Oscar Wilde, Schopenhauer, Teatro Kabuki, Lindsay Kemp e Marc Bolan, Bowie embebeu suas referencias e deferências na composição visual, musical e poética de sua arte. As fotografias, vídeos e trajes em 4K que desfilam pelos frames de Moonage Daydream ganham um aspecto ainda mais fantástico, assim como as entrevistas históricas de Bowie que Morgen remodela e remixa em uma montagem catártica – que ele mesmo assina.

Moonage Daydream emula então o frenesi que a musicalidade camaleônica do mesmo provoca, ainda que se apoie bastante no registro definitivo que D. A. Pennebaker fez ao vivo de David Bowie como Ziggy Stardust e os Spiders from Mars no show de despedida realizado no Hammerstein Odeon. Morgen sabe a força da imagem de seu objeto fílmico e sobrepõe Bowies de todas as idades, em vários registros ao vivo mais sincopados ou mais performáticos para reforçar a mítica do astro do rock Ziggy Stardust; a majestade de Aladdin Sane; que distanciam-se do desatino e torpor do Thin White Duke ou dos cabelos platinados da versão bronzeada de Bowie em Serious Moonlight. Talvez não tão arrojado enquanto memorabilia imagética de som e fúria quanto “The Velvet Underground” de Todd Haynes, “Moonage Daydream” não quer ser nem por um segundo um documentário musical sobre David Bowie enquanto mega estrela, cantor e compositor. O filme se apresenta como um ensaio filosófico e assim deve ser experienciado, por iniciados ou não.

“Está me ouvindo David?”

Porém momentos que ajudam a compor o quebra cabeças significado pelas múltiplas fases e personas de David Bowie estão em “Moonage Daydream”, como a entrevista para o programa de Russell Harty em 1973, quando ele é questionado sobre sua sexualidade e personalidade e responde puerilmente (“eu sou um colecionador que ama a vida”). Ou as centenas de pinturas que criou ao longo dos anos e que jamais tinham sido exibidas, as fotografias das andanças pelo Sudeste Asiático e outras preciosidades que estavam guardadas a sete chaves. Reverberando do lado de dentro, as palavras, a entonação, o timbre de Bowie cantando trechos de canções que ultrapassam espaço e tempo se tornam epopeia no filme. Morgen promove um desbunde, a visão de um autor, um fã e um entusiasta do grande e indecifrável artista britânico que, como a enigmática esfinge, dá pistas do seu mistério de forma absolutamente fascinante. E captura mentes, corações e imaginários da audiência, totalmente abduzida em IMAX.