• “Magnólia” (1999). Direção: Paul Thomas Anderson. Elenco: Tom Cruise, Philip Seymour Hoffman, Julianne Moore, William H. Macy, John C. Reily. Disponível na Netflix.

Uma capacidade que o cinéfilo adquire com o tempo é a de manter-se aberto a mudar de opinião. Na verdade, isso torna-se natural com o passar do tempo, uma vez que se estabelece uma disponibilidade para isso. É estimulante um novo olhar sobre algo, uma observação que se modifica não porque o que está sendo visto mudou, mas porque nós mudamos.

Uma filmografia como a de Paul Thomas Anderson, cineasta de 48 anos com oito longas-metragens, oferece condições para mudanças de opinião. Há sempre muito a ser visto em suas obras, muita qualidade técnica dos profissionais envolvidos, além de temáticas instigantes investigadas com perícia artística diferenciada.

A mudança de opinião aqui não vem exemplificada como algo que era bom e em um novo momento não é mais, mas como algo que tem qualidades escondidas em detalhes que passam despercebidos em uma primeira assistida, e que uma vez que vêm à tona quando revisitadas modificam (para melhor ainda) a opinião que se tinha sobre o filme.

MESTRE DE SEU TEMPO

“Jogada de Risco”, “Boogie Nights”, “Magnólia”, “Embriagado de Amor”, “Sangue Negro”, “O Mestre”, “Vício Inerente”, “Trama Fantasma”!

É colocar a mão dentro da caixinha, mexer, sortear, e o filme escolhido vai ser extraordinário, com enquadramentos e movimentos de câmera (dependendo da fase do diretor) envolventes, trilha musical dinâmica, atores em excelente forma – Paul Thomas Anderson, além de todas as qualidades que possui como “decupador”, é dos melhores diretores de atores do cinema mundial –, e uma direção capaz de extrair o máximo de cada elemento, que coordena uma verdadeira orquestra de signos complexos e expansivos que são cuidadosamente domados para darem conta de narrar a mesma história, que jamais soa banal.

É o tipo de cineasta que já pode ser chamado de mestre, mesmo jovem. Sua obra já define um período do cinema, seu estilo desenvolve a linguagem, suas ideias resistem. É o tipo de artista que junto com outros três ou quatro definem uma geração. As frases são fortes, mas não corrompem a verdade. É questão de tempo para ser reconhecido como tal.

Os filmes de Paul Thomas Anderson vão fundo demais no que se propõem, e nem sempre causam boa impressão quando assistidos pela primeira vez. Entretanto, por ter tanto rigor nos signos, estes títulos crescem muito quando revisitados. Parece que foram pensados para serem vistos diversas vezes, há muito o que encontrar.

E aí, levando por esse aspecto, creio que nenhum filme da obra de Paul Thomas Anderson oferece tantos elementos quanto “Magnólia”.

AS HISTÓRIAS

Na trama acompanhamos 24 horas na vida de vários personagens “aleatórios” que moram em Los Angeles. Jim Kurring (John C. Reilly) é um policial de bons valores que quer contribuir para a comunidade, mas com inseguranças que o tornam solitário. Ele encontra Claudia Gator (Melora Walters), uma moça sofrendo com depressão e vício em drogas, além de ter uma relação distante com o pai, o apresentador de TV, Jimmy Gator (Philip Baker Hall). Famoso por um programa em que crianças desafiam adultos em um jogo de perguntas e respostas, ele descobre estar com câncer em estágio avançado.

Enquanto, isso, no programa, o garoto Stanley (Jeremy Blackman) está prestes a bater o recorde do show, o que causa uma relação tensa com o seu pai, Rick (Michael Bowen). Já Donnie Smith (William H. Macy) brilhou na atração da TV quando criança, mas, leva uma vida miserável, desempregado e sem ter o amor correspondido pelo bartender que trabalha em um bar próximo. O dono da emissora de TV, Earl Partridge (Jason Robards), está à beira da morte acompanhado do enfermeiro, Phil (Philip Seymour Hoffman), mas sem a presença de sua esposa, Linda (Julianne Moore). Ao ver o marido nessa condição, ela sente-se culpada e sem saber como agir. Earl incumbe Phil de uma última tarefa antes de morrer: encontrar o seu filho, Frank Mackey (Tom Cruise), um guru sexual machista que prega a supremacia dos homens em relação às mulheres.

Ah, claro, ainda tem o prólogo, que nos apresenta a três histórias curiosas (aparentemente baseadas em fatos reais noticiados pela imprensa) sobre coincidência, sorte, algo que não é nem uma coisa nem outra. A terceira história, a do garoto que iria cometer suicídio jogando-se de um prédio, mas acabou assassinado, baleado, antes de chegar ao chão, é particularmente brilhante.

SEM LINHA DE CHEGADA E CONFLITOS AO EXTREMO

A partir dessa introdução pode-se tirar a equivocada ideia de que “Magnólia” é sobre o acaso, às coincidências que nos aproximam e afastam das pessoas que cruzam as nossas vidas e as modificam. Isso está no filme, mas como um dos elementos diversos que compõem este mosaico, que jamais pode ser compreendido através de apenas uma lógica, um ponto de vista.

Muito comparado a “Short Cuts” (1993), de Robert Altman (mestre do cinema norte-americano, que teve uma relação muito próxima com Paul Thomas Anderson, sendo seu verdadeiro mentor na carreira), “Magnólia” possui características particulares, mas certamente traz deste filme o foco na complexidade da teia de relações entre os personagens.

Os conflitos vistos na tela são adultos, sem respostas certas e/ou busca por fazer o bem. As motivações dos personagens são muito bem definidas, e a maneira como caminham (ou não) para resolver isso está ligada a uma forte coerência com o universo da trama, as situações, motivações e personalidade destes seres. Não há linha de chegada, nem respostas certas.

Outro ponto em comum é a maneira à flor da pele como os personagens agem e reagem. É algo bem diferente da ação contida que definiria personagens – teoricamente – mais intelectualizados e/ou frios, que são os que normalmente o cinema mais gosta de apresentar. Tanto em “Short Cuts” quanto “Magnólia”, os personagens agem intuitivamente, confrontam uns aos outros, gritam, se interrompem, tomam ações repentinas, criam situações que nos causam estranhamento a princípio, algo que sugere algum tipo de mau gosto na escolha das palavras, gestos, no comportamento.

Se estamos falando realmente de acaso, pessoas comuns, dramas comuns, não é assim que as pessoas reagem de fato? É particularmente difícil conduzir cenas que vão para este lugar, tão para fora (como o encontro entre Claudia e Jimmy no qual ela o expulsa de casa, ou praticamente todas as cenas envolvendo Frank Mackey), talvez, por isso, seja tão incomum filmes que acessam esse registro.

TROCA ENTRE DIRETOR E ATORES

Mas também só funciona por conta do elenco, até porque foi pensado desta maneira. Paul Thomas Anderson possui tantas qualidades na direção de atores, que fica parecendo que suas ideias no filme vêm a partir do jogo entre eles, e não o contrário. Há uma fluidez palpável na maneira como os personagens se relacionam, o jeito como se apaixonam, se frustram, choram, lamentam-se.

Tudo é realmente humano, mas torna-se ainda mais devido ao dispositivo do filme, que o afasta de obrigações narrativas mais tradicionais, focando-se realmente na tarefa de desenvolver bons personagens, e como eles podem potencializar o caminho do outro.

Fica até difícil pensar em indicar nomes individualmente, pois a coesão do elenco faz com que o conjunto torne tudo bem maior do que o somatório de boas interpretações individuais. Apenas por questão de registro, cito Cruise, Reilly, Hoffman e Robards, que estão realmente extraordinários, tornaram-se ícones, imagens que definem esta obra, talvez suas carreiras.

O jogo dos atores em “Magnólia” também é beneficiado pela maneira muito particular como Paul Thomas Anderson filma esses corpos, com diversos closes, cortes rápidos, travellings, planos-sequência. Um pouco diferente do que fizera em “Boogie Nights”, “Embriagado de Amor” e “Vício Inerente”, a câmera que está sempre se movendo (ou se aproximando, ou afastando do personagem) parece determinada a trazer dinamismo, locomoção à trama, com composições de quadros bastante elaborada, mas que se move com elegância e objetividade. O estilo é repleto de informações, mas nada está ali por acaso, o filme nunca deixa de caminhar pra frente. O efeito é o filme também.

ACERTOS ONDE A MAIORIA ERRA

Preciso citar o fotógrafo de “Magnólia”, Robert Elswit, e o montador, Dylan Tichenor. Estes dois realizaram algo realmente extraordinário aqui.

Há longas sequências narradas por algum personagens (normalmente Jim ou Jimmy) em que vemos uma espécie de panorama do que se passa com os demais personagens (a sequência de abertura é um excelente exemplo, ou ainda o duro trecho em que Earl fala de seus arrependimentos), e tudo permanece facilmente compreensível, atraente, despertando nossa curiosidade. Logo depois a trama volta a caminhar naturalmente, momentaneamente focada em um deles.

Dar conta da trajetória de um personagem já é um desafio, mas fazer isso com quase uma dezena de pessoas, torna o desafio muito maior, exige muito mais dos aspectos que formam o filme. Tudo precisa se fechar individualmente, mas também caber dentro do mesmo filme.

Uma montagem que dá conta de tudo isso fazendo parecer simples exemplifica a maestria a que este filme alcançou.

Outro ponto em que “Magnólia” acerta onde a esmagadora maioria erra é no uso de uma trilha muito presente. Há música presente quase ininterruptamente, só que isto está longe de ser uma solução para tornar mais fácil o público permanecer no filme, ou para sublinhar as emoções na tela. A música de Jon Brion faz parte da obra assim como os personagens excêntricos, como a câmera com closes repentinos, a montagem com cortes rápidos. Tudo é uma coisa só, indivisível, excessiva.

Uma prova disso é a cena em que todos cantam “Wise Up”. Perceba que até Earl, prestes a morrer, canta. O jogo proposto por Paul Thomas Anderson abrange escolhas como essa, borrando a linha previsível, seguindo os parâmetros que cabem para aquela história a partir de uma acurada compreensão artística do seu cineasta. Genial.

O SUBLIME CONTATO COM O ESTRANHO

Aí vem a chuva de sapos, né? Eu já fui a pessoa que dizia que gostava muito de “Magnólia” até começar essa cena, depois não entendia e me frustrava. Acontece.

Com o tempo as teorias conspiratórias sobre o significado da tal chuva de sapos passaram a ser muito destacadas, e há teses ótimas, como a do Pablo Villaça, que contribuíram muito para minha análise do filme ser alterada, ganhar mais relevo.

Há mensagens escondidas no filme referentes a passagem de Êxodo 8:2: “se você não quiser deixá-lo ir, mandarei sobre todo o seu território uma praga de rãs”. “Magnólia” trata de abandono, perdas, morte, e este trecho ganha ainda mais força no momento em que Frank muda sua postura, e pede para que Earl não morra. Aí vem o que podemos chamar de intervenção divina – outros podem chamar de acaso, como nas três histórias do prólogo – que cria finalmente um ponto em comum para todos os personagens se relacionarem, como acontece em “Short Cuts”, com o terremoto.

Eu apenas não creio que isso defina o filme, ou que seja a coisa mais importante. O valor de “Magnólia” não está nas entrelinhas ligadas a esse tipo de mistério, mas sim ao mistério das nossas relações, sentimentos, desejos, medos, e do quanto é impossível saber o que nos reserva um contato com um estranho. Isso está ao alcance das mãos, mas, ao mesmo tempo, pode se passar toda uma vida sem saber.

Vale mais a maneira como explora esse mistério através de enquadramentos, texto, atores, montagem, câmera, música absolutamente raros, a serviço de uma concepção geral muito bem apurada, que somou decisões acertadas uma depois da outra durante mais de 180 minutos. Como disse antes, podemos falar o mesmo dos demais filmes de Paul Thomas Anderson, mas, realmente não sei se é possível acertar mais do que acertou aqui.

Acho que não.

Nos filmes seguintes que realizou na carreira, o diretor mudou de estilo, experimentou, expandiu seus horizontes como diretor, deixando um pouco de lado referências, assumindo um estilo mais rigoroso, bem menos fluido. “Magnólia”, por mais que seja seu melhor filme (posso mudar de opinião assim que rever “O Mestre”…), não representou um ápice precoce em sua carreira.

Creio que representa o cinema mais emotivo do diretor, aquele em que as emoções subvertem a racionalidade e criam uma relação mais aproximada com o público, sem deixar de lado a perícia técnica.

E arte não é, também, sobre isso?