“Martin Eden” é um relato curioso.
Inspirado na obra homônima de Jack London, o filme dirigido por Pietro Marcello narra a trajetória de um jovem sedento por conhecimento. Simultaneamente, essa jornada também pavimenta discussões em torno da luta de classes e de algo que merece ser debatido e estudado hoje: o preconceito político-ideológico.
Sem querer entrar em considerações referentes ao Fla x Flu que se instaurou em nossa política, o caminho percorrido por Eden (Luca Marinelli) dialoga bem com o Brasil contemporâneo. Temos um rapaz humilde que mora de favor na casa de sua irmã mais velha e que aspira ser um poeta. Por isso, sempre carrega um livro consigo e passa seus tempos livres indo a sebos, pechinchando obras que lhe chamam atenção. A partir do momento em que tem um encontro com a aristocracia, percebe que precisa estudar e correr atrás do seu sonho. A questão é que seus objetivos, no primeiro momento, são constantemente interrompidos pela falta de oportunidades.
Nesse sentido, a luta de classes ganha um significado especial, pois, por meio da leitura de Herbert Spencer a mente e o processo criativo do protagonista se expandem criando um turbilhão de pensamentos conflituosos. Éden é contra o socialismo, como a cena em que discursa no palanque deixa claro porque acredita que é da natureza humana ser sempre governada por outros homens. Ao mesmo tempo, entretanto, é contra a aristocracia e a postura liberal que eles dizem assumir. A percepção de que as duas perspectivas estão distantes de se preocupar realmente com o indivíduo, desperta a ira do personagem principal, que – semelhante ao que encontramos nas redes sociais com os famosos textões – utiliza as palavras para despejá-la ao mundo.
Perigosamente, isso conduz a evolução artística do personagem, que vai de marinheiro a um escritor rico e bem-sucedido. Contudo, essa construção evidencia um comportamento social muito peculiar, a falta de senso de pertencimento. Os conflitos entre o estudo e o trabalho, a sobrevivência e o sonho, a aristocracia e o proletariado o tornam alguém insatisfeito e sem certeza de seu papel social e como indivíduo. Queria escrever para ser como a mulher que julgava amar. Quando chegou ao nível social dela, porém, não era aquilo que almejava para si.
tom neorrealista
A escolha de Marcello de colorir o filme com um filtro azul com um objeto vermelho em destaque salienta a imersão do protagonista em seus conflitos de operário-artista e na angustia de não pertencer a lugar algum. Essa percepção se amplia com as imagens documentais de arquivo cuidadosamente selecionadas para ilustrar os poemas e intervalos, sendo responsáveis por mergulhar o espectador no período em que a trama se passa e na narrativa de Eden.
A fotografia granulada e as imagens rodadas em 16mm nos levam a uma Itália marcada pelo movimento político e ofertam um tom neorrealista à película, ambos importantes para compreender a personalidade de Martin Eden.
Apesar de um terceiro ato malconduzido, a jornada contada por Marcello traduz muitas colocações contemporâneas, principalmente, o lado obscuro do pós-isolamento social. Ele busca um paraíso, como seu nome alude, que nunca encontra e por isso se perde em meio as conquistas que obtivera. A inocência perdida na busca pelo conhecimento o fez afundar em seus próprios conflitos internos. Talvez este seja o motivo, porque seu o final é simbólico e perfeito, sem apoiar lados, “Martin Eden” segue firme para a frente e em busca do que lhe satisfaça a mente e o corpo.