Quando as primeiras cenas de “Neirud” surgiram, achei que se tratasse de um documentário na vibe de “Democracia em Vertigem”. Isso porque a narrativa de Fernanda Faya se inicia a partir dos momentos de reencontro que a família da diretora tinha com a avó Nely e a tia Neirud em datas comemorativas. Eu não estava tão enganada, uma vez que a cineasta opta por um relato íntimo, no qual coloca-se como uma personagem da trama sem receios e parte para investigar a vida da tia que pouco sabe. 

Nessa procura, o filme se apresenta em camadas que são discutidas superficialmente conforme Faya abre portas para temas que atravessam não apenas Neirud, mas variados personagens do cotidiano, os quais ela espelha indiretamente. Há uma força na personagem-título responsável por atrair a cineasta, por torná-la a heroína de sua infância nos anos 80/90. Uma potência reverberada pela significância que Neirud carrega, uma vez que a sua jornada reflete a história da mulheridade negra no Brasil: alguém silenciado e apagado dos registros. 

A completude de Neirud

Acompanhamos a busca por uma mulher que foi ofertada a uma família pela mãe ainda criança, começou a trabalhar aos oito anos como babá, fugiu com o circo aos doze. Era forte, media 1,90 cm e conseguia erguer a lona do circo sozinha, ao mesmo tempo em que era silenciosa, doce, majestosa, a mulher gorila – a lutadora africana, a companheira de sua avó. E assim como inúmeras mulheres de cor brasileiras, tem lacunas em sua trajetória. A produção se propõe a tentar diminuir esses espaços por meio de uma investigação afetiva sobre o passado da personagem-titulo, no rastro de remontar o quebra-cabeça de sua existência.

Trata-se de um filme sobre memórias, afetos e ancestralidade. Desde o inicio, contudo, a ausência de elementos sobre a vida da personagem-título toma a trama e a preenche por completo. Ao mesmo tempo, em que isso é interessante, visto que a documentarista redescobre sua tia postiça juntamente conosco, é o seu maior ponto de fragilidade em variados aspectos.

Uma frágil reflexão

A montagem de Yuri Amaral, por exemplo, utiliza as fotografias guardadas pela família de Faya, as quais evidenciam o cuidado em preservar registros familiares e conhecer as raízes de sua linhagem circense. Em dado momento, no entanto, a direção opta por uma encenação que fica solta, sem conseguir dialogar com a proposta central do documentário. 

A cena, no entanto, aponta a instabilidade da pesquisa documental, já que tenta desmembrar-se do elo mais forte do projeto e não consegue se calcificar. Uma realidade presente ainda nas tentativas vãs de se discutir racismo, patriarcado e homofobia, os quais são introduzidos de maneira convencional, sem despertar grandes debates ou reflexões. 

Quem ainda consegue se sobressair é o universo da luta livre circense feminina, mas Faya não se debruça sobre este ponto, porque está mais preocupada nos impactos de suas descobertas encenadas sobre seu clã e concentrada em suas próprias reflexões. 

O curioso, nesse sentido, é perceber o quanto o cenário documental nacional tem mergulhado nessa escolha estilística, dando ao público pouco espaço para que reflexione acerca do que está acompanhando. Em “Neirud”, especificamente, a narração constante busca reforçar ainda o quanto a personagem-título é importante para a diretora, mas sempre numa perspectiva da outridade. Afinal, Neirud era uma pessoa negra dentro de um clã branco. E, embora, pareça haver uma consciência racial, muitas das questões e ausências de Neirud dentro desse ambiente relacionam-se a racialização, inclusive o fato da equipe do filme ser majoritariamente branca. Nem entrarei nos pontos sobre religião e sexualidade, porque ecoam na mesma superficialidade e abordagem autocentrada.

O grande trunfo de “Neirud” repousa na personagem-titulo; mesmo a sua ausência em tela, se preenche pela potencialidade de sua representatividade. É uma pena que Faya não consiga se aprofundar nos temas que lhe atravessam, voltando-se para si mesma. Algo que não a impede de carregar no projeto memória, carinho, apagamento e investigação. Tudo o que Neirud e Nelly representam para si.