Em alguma noite de 2019, eu e amigos da graduação nos dirigimos até uma sessão de “Bacurau”, em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. Findo o filme, aplausos e vivas. Também tomei minha parte na algazarra, mas uma sensação incômoda restou comigo; um leve refluxo, daqueles que, a princípio, pode-se ignorar, até que ele toma conta de toda a extensão do seu esôfago. Era a sensação de que o filme, no fim das contas, não era tão bom assim. Pior: eu sequer podia dizer o quanto do que assisti era realmente um filme; ele simplesmente não parecia se sustentar por si só enquanto obra cinematográfica. A coisa toda começava a parecer, antes de mais nada, uma experiência pré-fabricada e muito bem calculada com pretensões a catarse; um tapinha nas costas de todos aqueles que foram ao cinema com uma predisposição e uma ânsia incontida de gritar o inevitável “Fora, Bolsonaro!” ao subir dos créditos. 

Trago essas rememorações porque este “Medida Provisória”, estreia na direção de Lázaro Ramos, parece sofrer do mesmo mal. O caso, no entanto, é ainda mais grave. É que “Bacurau”, com seus split diopters e referências a John Carpenter, era minimamente empolgante, ou seja, tinha um quê de filme, mesmo. Lázaro, por outro lado, se perde em planos picotados e “Atuações” com A maiúsculo (com direito a olhos esbugalhados, gritaria e voz rouca) – tudo muito “importante”, muito “respeitável”, “urgente” e outros rótulos do tipo. 

A premissa poderia ser um prato cheio para alguém com alguma imaginação cinematográfica: em um Brasil do futuro próximo, o governo determina que as populações negras – chamadas eufemisticamente de pessoas com “melanina acentuada” – retornem ao continente africano. A partir daí, acompanhamos os percalços de Antonio (Alfred Enoch), Capitu (Taís Araújo) e André (Seu Jorge). O interesse de Lázaro está menos em contar uma história e mais em tecer uma série de momentos supostamente relevantes; ele não se interessa em criar personagens, mas porta-vozes de discursos já proferidos antes com maior pungência. Enfim, é menos um filme e mais uma experiência análoga a de passar os olhos por um fio bem-intencionado do Twitter: imagens e palavras que evaporam diante de nossos olhos ao darmos scroll

CONSTRUÇÕES PROBLEMÁTICAS


Faz sentido: quem não se garante em termos fílmicos que, ao menos, traga um discurso bacana para angariar a boa vontade da plateia. A questão é que discursos se tornam enfadonhos depois de um tempo e “Medida Provisória” parece o filme de alguém avançando com sofreguidão no processo de rodar seu primeiro longa. Ações simples, como uma senhora se dirigindo a uma plateia em frente ao Banco Central, logo no início do filme, são picotadas um sem-número de vezes sem nenhum motivo discernível. Tais momentos parecem, sobretudo, resultados de um diretor sem muita ideia do que filmar, tendo como norte o pensamento de “na edição a gente vê”. 

Também é de se supor que, dada a premissa, o espectador possa esperar por cenas de verdadeira tensão. De fato, uma das poucas sequências relativamente eficientes do longa é aquela em que Capitu se vê em meio a um Rio de Janeiro transformado em zona de guerra; mas a sequência também é sintomática da falta de traquejo que “Medida Provisória” exibe em diversos outros pontos da projeção: correndo de um soldado, Capitu dispara pelo quarteirão; o soldado dobra uma esquina e aponta sua arma na direção dela – clímax indubitável da sequência. Vemos a moça correndo uma última vez e, então, o filme abruptamente corta para um outro lugar em um establishing shot, os conhecidos planos abertos que situam o espectador onde a trama está se desenrolando. Tudo isso sem-cerimônias, de forma crua. 

A próxima vez que Capitu aparece, já está escondida em meio à mata. A sequência termina e o gosto que fica é o da inconclusão – não uma ambiguidade que aumenta o suspense, mas uma falta de resolução do tipo “será que não tem nenhum plano faltando aqui?”. 

LONGE DE REALMENTE SENSIBILIZAR

Se pouco falei, ao menos diretamente, das pretensões políticas do filme, é porque elas são óbvias a qualquer um que tenha lido a sinopse descrita alguns parágrafos acima. Seria apenas chover no molhado. Restaria nos perguntarmos, então, se “Medida Provisória” ao menos consegue articular suas ideias de alguma forma cinematograficamente forte; se alguma imagem interessante sai disso. Mas tudo é tão calculado – trilha, referências à política contemporânea, monólogos – que nenhuma imagem fica conosco. 

Tal qual a plateia de Niterói em 2019, o pessoal da sessão em Botafogo –  bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro – na qual me encontrava também estava em polvorosa. Como não podia deixar de ser, o “Fora, Bolsonaro!” marcou presença. É que as palavras já estão prontas, os termos já estão dados e as deixas para os aplausos, muito bem-sinalizadas. E, afinal de contas, essa coisa toda de conscientização tem algum efeito? Bem, os nossos inimigos já sabem exatamente o que esperar. Os nossos companheiros já convertidos, também. E os que estão em cima do muro, eles se importam com alguma parte disso? Suspeito que não: como disse, basta uma passada de olho na sinopse – ou nas entrevistas da equipe, ou no bafafá da mídia – e você já sabe exatamente o que te aguarda. É arte já embalada, bem arrumadinha e para não causar confusão a ninguém. Também não instiga, nem provoca. 

As alegorias geralmente têm esse problema: sem força própria, derivam qualquer impacto possível das relações de tradução entre a obra e o mundo – essa cena significa X; aquela, Y. Em “Medida Provisória”, a opção é pelo máximo de didatismo. Nessas horas, eu só consigo lembrar do Ice Blue, do Racionais MC’s, dizendo-nos que, hoje, mais do que conscientizar, é preciso sensibilizar. E eu não acredito que novas sensibilidades possam surgir de uma experiência tão controlada, tão inofensiva, tão segura – experiência que é, em suma, tão pouco filme.

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