Acredito que todo filme é uma obra de arte, por isso a expressão “filme de arte” nunca fez muito sentido para mim. Dito isso, o eterno dilema do cinema é o conflito entre arte e produto. Desde a hora em que alguém resolveu cobrar ingresso de outra pessoa para ver o cinematógrafo, se instituiu a relação entre comércio e intenção artística. Todo filme é também um produto, para além de uma obra de arte. Alguns puxam mais para um lado, alguns mais para o outro. E dentro desta dicotomia o cinema viveu por pouco mais de um século e seus espectadores também.

Tudo isso para falar de Morbius. O mais triste a respeito deste filme, nova produção dos estúdios Sony com um personagem vilão do universo do Homem-Aranha, é o fato do seu aspecto de produto ser tão escancarado, que fica até difícil defendê-lo como arte ou enxergar qualquer mérito artístico nele. Tudo em Morbius você já viu em outros filmes. Tudo nele é calculado para tentar agradar ao mínimo denominador comum de gosto cinematográfico. É um filme de tendência: super-heróis estão dando certo, então a Sony vai explorar esse filão até raspar o tacho. E como eles têm direitos sobre personagens adjacentes ao Aranha e o ridículo Venom (2018) fez sucesso a ponto de ganhar uma sequência ainda pior, então este Morbius recebe permissão de existir.

Se em Homem-Aranha (2002) Peter Parker era mordido por uma aranha e se tornava herói, aqui temos Michael Morbius (vivido por Jared Leto), um cientista que sofre de uma doença sanguínea e faz experimentos com morcegos vampiros para tentar se curar. Como quase todos os cientistas de filme, quando não criam monstros, eles se tornam um: o sujeito vira uma criatura vampírica com superpoderes e sede de sangue. Como uma espécie de anti-herói, Morbius acaba tendo que enfrentar um amigo de infância, Milo (Matt Smith), que sofre da mesma doença e também vira vampiro, mas sem o senso moral do protagonista.

 VELHAS FÓRMULAS

Quer dizer, pelo menos é o que parece, porque no roteiro tudo é mal-feito e mal pensado. Milo vira vilão porque sim, afinal, esse tipo de narrativa exige um, embora não haja qualquer tipo de construção de motivação para o personagem. O máximo que se tem é uma dancinha maluca – uma cena clichê do momento – que, pelo menos, demonstra que o ator se divertiu. Talvez ele tenha sido o único. E também não há construção de personagem para Morbius: nunca sabemos porque ele não simplesmente vira vampiro full-time.

Se não existe história, o que resta ao diretor Daniel Espinosa – pau-para-toda-obra de Hollywood, mas que até tinha feito alguns filmes razoáveis como Crimes Ocultos (2015) e Vida (2017) – é fazer de Morbius um pastiche de outros filmes.

De novo, assim como em Homem-Aranha, o herói acorda e se descobre sarado. Assim como em Batman Begins (2005), o herói é rodeado por uma revoada de morcegos – até a trilha musical é parecida – e eles são usados como salvação num momento decisivo. Há até uma citação supostamente engraçadinha ao pavoroso Venom. E claro, o filme não deixa de ter as insinuações de que seu protagonista e o do Tom Hardy uma hora vão encontrar uns com os outros e até com o Homem-Aranha, em cenas pós-créditos que não fazem o menor sentido e só se destinam a manter a máquina girando.

 SEM SALVAÇÃO

Espinosa repete o que já foi feito porque seu filme é mais um item da fábrica de salsicha. Nem capricho se nota muito aqui: o filme é feio, todo escuro e com um visual monótono. Por algum motivo, Morbius deixa uma “fumacinha” digital sempre que se movimenta em super-velocidade e, por consequência, todas as cenas de ação viram um borrão. Outra coisa esquisita no filme é a luta no metrô entre Morbius e Milo: a história se passa em Nova York, mas o metrô visto nesta cena é aquele londrino e a produção nem tentou disfarçar.

Um momento assim denuncia o quanto os indivíduos que fizeram esse filme também o consideravam um mero produto. É uma forma muito cínica de se fazer cinema: junta-se umas peças de outros filmes com um conceito super-heróico que está na moda mistura efeitos visuais vagabundos e reúne atores para tentar dar dignidade à empreitada. O público assiste porque está acostumado a essa dieta, mas 10 minutos depois da sessão, o filme já foi esquecido.

No entanto, um filme com ambições principalmente comerciais não precisa ser cínico. Pode ser feito com qualidade e inteligência. Só que as mentes na Sony por trás de Morbius não se preocupam com isso – entre elas está o produtor Avi Arad, o refugo dos anos 2000 que ajudou a dinamitar o Homem-Aranha 3 (2007) de Sam Raimi.

E curiosamente, uma das poucas coisas dignas de nota em Morbius é justamente o Jared Leto. Não que ele tenha uma grande atuação nem nada, mas, pelo menos, o ator leva a coisa a sério ao menos nos primeiros minutos do longa e tenta, na medida do possível, conduzir o filme nas costas. Leto, que foi um Coringa constrangedor no desastre Esquadrão Suicida (2016), agora até tenta se redimir junto aos fãs de HQs, mas ninguém poderia salvar este filme. Afinal, Morbius é uma obra sem alma, e o mais triste é que foi feita assim de propósito.

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