O novo filme de Richard Linklater pode parecer à primeira vista tanto uma curiosidade em sua filmografia, quanto uma extensão das preocupações de sua obra. Em “Apollo 10 ½”, o cineasta se volta novamente para a cidade natal, Houston, Texas – palco do premiado “Boyhood” (2014) – para explorar as minúcias da vida nos subúrbios texanos. A novidade é não só o contexto específico da corrida espacial, mas o modo como o tom memorialístico se mescla a uma aventura coming-of-age. No fim das contas, a impressão que fica após o filme é a de que estaríamos melhores servidos só com a primeira parte dessa equação.

Acompanhamos Stan (voz de Milo Coy na infância e Jack Black quando adulto) rememorando a infância em Houston nos anos 1960, quando as crianças acompanhavam os caças de treino rompendo a barreira do som sobre suas cabeças e “o futuro otimista era agora”. Sua família é grande – não tão grande quanto a de seu vizinho, descobrimos – e a vida parece relativamente pacata. Isto é até o momento em que cientistas da Nasa o recrutam para uma operação ultrassecreta. O objetivo: pousar na Lua.

E se temos, então, a impressão de que “Apollo 10 ½” seguirá as mecânicas básicas de uma aventura “Sessão da Tarde”, o mesmo faz questão de nos mostrar que… nem tanto. Bem, no momento em que o treinamento de Stan está prestes a tomar o pontapé inicial, o filme congela – o freeze frame suspende no ar o projétil de vômito do garoto, preso no interior de uma daquelas máquinas infernais de simulação da NASA. O que tem início, então, é uma excursão memorialística pela Houston (e pelos EUA) dos anos 1960, uma que parece tão viva que só pode se tratar das memórias de alguém que não só viveu, mas conseguiu se ater às suas memórias sem que elas se esvaíssem.

Memória e cultura

Porque se uma coisa é certa em relação às nossas lembranças, é que elas são fugidias e maleáveis. O uso da animação no filme, em técnica de rotoscopia similar àquela já utilizada pelo diretor em “Waking Life” (2001) e “O Homem Duplo” (2008), parece apontar justamente para essa dimensão, com traços por vezes erráticos e mudanças de estilo. Assim, “Apollo 10 ½” nos coloca em contato com as texturas de uma alface congelada em um sanduíche, ou de uma rua texana inundada pela chuva, de forma ligeiramente distorcida – tudo se torna parte das brincadeiras infantis de Stan e seus irmãos.

“Apollo 10 ½” também se debruça sobre o modo como entramos em contato com uma época através da infinidade de produtos culturais e midiáticos que a mesma produz. Cartelas de seriados e logotipos de jogos de tabuleiro literalmente se empilham sobre o frame repetidas vezes. As imagens de arquivo utilizadas possuem diferentes estilos de animação entre si: imagens jornalísticas dos astronautas parecem se converter em capas de gibis e de livros sci-fi.

Stan nos diz em off que ainda se lembra de todos os seriados já esquecidos que sobreviveram a apenas uma temporada. O filme parece, justamente, uma tentativa da parte de Linklater de guardar, fixar tudo – conter o tempo. Os hits pop da época se sobrepõem na trilha sonora enquanto o filme segue por esta ou aquela tangente memorialística – digamos, o número de sabores oferecidos por uma sorveteria, ou o ritual de preparo da merenda da escola. Tudo isso aparece filtrado por filmes, séries, noticiários, revistas, uma catalogação midiática que se converte em parte de uma mesma imaginação infantil. É como revisitar aquele álbum de figurinhas que você completou aos 10 anos e descobrir que ainda se lembra do nome de cada jogador da Copa de 2006.

De volta à NASA

E é precisamente nesse ponto que retornamos ao momento onde paramos: Stan em freeze frame nos QGs da NASA. Eu confesso que já tinha esquecido de todas as travessuras espaciais a essa altura, de tão absorto que estava com todo o inventário afetivo que Linklater constrói.  De fato, parece que “Apollo 10 ½” não consegue conciliar muito bem essas suas duas faces: tudo que envolve a missão de Stan simplesmente não se mostra tão interessante quanto o registro da época empregado por Linklater.

As imagens midiáticas que o filme resgata, filtradas pela animação, dialogam com a ludicidade de Stan em sua viagem à lua. A questão é que os segmentos sobre a missão simplesmente não se mostram tão interessantes de assistir: o espanto da imagem de uma criança pilotando uma espaçonave logo se esvai e, enquanto isso, não conseguimos deixar de pensar: “ok, já entendi o ponto, agora me tire do espaço e me leve de volta às texturas sessentistas de Houston”.

Mesmo que não forme um todo coeso, “Apollo 10 1/2” é uma deliciosa visita àqueles detalhes minúsculos da infância que se mostram, sessenta anos depois, tão fundamentais quanto tudo que os sucedeu.

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