Algo que me chama atenção no trabalho de Anita Rocha da Silveira (“Mate-me por favor”) é a forma como ela usa anseios e questões de amadurecimento feminino para causar tensões dignas do cinema de horror. A cineasta flerta com diversos subgêneros a fim de compor uma crítica social, algo latente e maduro em “Medusa” diante de filmes com temáticas semelhantes nos últimos tempos. 

Somos apresentados a um grupo de jovens meninas, as quais durante o dia cantam na igreja, paqueram meninos do mesmo credo e fazem planos para suas próximas atividades eclesiásticas. Mas é a noite que se revelam, quando colocam máscaras de porcelana para atacar outras jovens que desfrutam de liberdade sexual contestada pelas religiosas. As personagens vestem o véu da santidade para se esconder de sua hipocrisia e do ódio que sentem pelos que pensam diferente. 

Nesse contexto, Silveira emula de maneira mais branda e, por isso mais alienante e tangível, uma sociedade teocrática. Há ecos de “Divino Amor”, principalmente nas cores e na cinematografia de João Atala (Democracia em Vertigem), que traz para o ambiente religioso o azul e rosa neon tão marcantes na produção de Gabriel Mascaro. As semelhanças, no entanto, param aí, considerando que a vida longe dos holofotes da religiosidade é um ponto de inflexão dentro do universo de “Medusa”. À igreja, contudo, destina aos membros funções dentro do agrupamento comunitário, em grande parte relacionadas a um sistema de justiça eclesiástico – com servos, policiais, juíz e carrascos -, que oferece espaço a misoginia. 

A organização religiosa se constrói sob uma visão deturpada da devoção, a qual influencia no conceito de feminilidade das personagens acoplado ao conservadorismo e tradicionalismo; estes motivos corrompem a própria noção que elas tem de si, do seu corpo e seu papel social. A maneira como se apresentam ao público – com os mesmos trajes, cabelos arrumados, roupas de tonalidades claras e seguindo o padrão de mulheridade social, a submissão aos homens – aponta a interferência e a distopia religiosa em suas próprias jornadas. 

NO CERNE DO MITO

O roteiro é sagaz em encontrar saídas para as libertar das amarras evangélicas, de um lado denotando o prazer sexual que sentem durante os linchamentos e, do outro, as alforriando de fato por meio da personagem Mariana (Mari Oliveira), a qual encontra a si mesma a partir do momento em que passa a andar com pessoas não ligadas ao credo, questão tangenciada com a realidade e o medo que alguns fundamentalistas religiosos tem de seus filhos e jovens ingressarem numa universidade pública, por exemplo. 

A questão se aproxima mais ainda da nossa vivência quando enfoca em Michelle (Lara Tremouroux) e sua relação com o namorado (João Vithor Oliveira). Invejada pelas amigas, por de trás da cortina da santidade, faz parte de uma estatística velada dentro da instituição eclesiástica presa aos moldes patriarcais: a da violência doméstica. Sua jornada nos faz refletir sobre a vida da mulher crente que camufla abusos e violências a fim de manter o status quo seu e de seu companheiro, uma situação corriqueira nas comunidades evangélicas, entretanto Silveira prova mais uma vez sua astúcia ao abordar uma sororidade dentro dessa conjuntura e a interpor como uma catarse diante da tensão sentida durante toda a projeção. 

“Medusa” se apropria do mito que o nomeia de forma perspicaz. Ele não é óbvio ou expositivo, mas inesperado ao passo de poder ser interpretado de formas diferentes. Por um viés, é a personificação da luxúria e dos medos castos escondidos na personagem fantasmagórica de Bruna Linzmeyer. Outro olhar nos permite perceber sua infiltração no seio religioso transposta numa figura capaz de provocar repulsa e desejo. Todos esses caminhos, no entanto, sintetizam-se no cerne do mito: a misoginia que parte das próprias mulheres. 

CINEMA PULSANTE

Anita Rocha Silveira prova mais uma vez sua habilidade de trabalhar tão bem jovens atores e de contrapô-los na construção de suas narrativas. Temos representantes dicotômicos entre liberdade sexual e castidade, masculinidade tóxica, paramilitares e as migalhas de um estado laico; em todos esses pontos o elenco flui de forma convincente e bem projetado, com destaque para Mari Oliveira e Tremouroux que são densas e tridimensionais com apenas traquejos corporais. 

Entre o grotesco e o libidinoso, “Medusa” explora distopia religiosa, misoginia e o desejo de forma autoral, madura e sem medo de ser criativo e disruptivo. É um cinema pulsante, que esbanja frescor, enquanto mergulha no universo jovem religioso utilizando o horror psicológico e social para explanar os desejos e anseios de uma geração alienada pelo receio do secular, do Outro.