Até fevereiro de 2023, o cineasta iraniano Jafar Panahi passou 14 anos sem poder sair do Irã; o intervalo fez parte de uma sentença que iria até 2030. Neste período, o diretor produziu filmes interessantes e consistentes como “Táxi Teerã” e “3 Faces”, que conquistaram, respectivamente, o Urso de Ouro no festival de Berlim e Melhor Roteiro em Cannes. Como visto, os limites geográficos não impediram o cineasta de prosseguir usando o cinema como uma manifestação do que pensa sobre a vida em seu país. A maior evidência se faz presente, agora, na metalinguagem que emprega em “Sem Ursos”. 

A narrativa se passa em uma aldeia humilde, próxima à fronteira com a Turquia. Por não poder cruzá-la, ele dirige um filme de forma remota, por meio de videochamadas e de um diretor assistente com quem se comunica constantemente. Acompanhamos o desenvolvimento desta produção em paralelo ao choque da convivência do cineasta com os moradores da vila isolada em relação à própria cultura e tradições. 

Neste processo, Panahi precisa se adaptar e encontrar soluções para atingir seu objetivo de produzir um filme a distância. É curioso o vermos, por exemplo, à procura de um sinal de telefonia para continuar gravando ou tentar estar próximo de seus atores, mesmo que não possa e forma física. Talvez várias dúvidas sobre o próprio conceito de direção cinematográfica e produção surjam a partir desta experiência, mas é neste ponto que a sagacidade e genialidade do conterrâneo de Kiarostami prevalece. 

No decorrer de toda a projeção de “Sem ursos”, vislumbramos a genialidade de Panahi para fazer cinema, apesar dos percalços e demarcações que enfrenta. Estamos diante de um cineasta que tem a percepção de construir algo para além do que seus olhos e seu corpo físico podem chegar. Em uma cena, por exemplo, entrega a própria câmera para que seu senhorio filme uma festa de casamento, com todos os itens tradicionais da vila em que se hospeda. Esta é só uma mostra do que está disposto a fazer para captar a realidade que se condensa sem se intimidar por suas próprias circunstâncias. 

A VEIA INSUBMISSA DE PANAHI

Como um antropólogo, o cotidiano do vilarejo se torna objeto de seus registros audiovisuais e fotográficos. Questiona as pessoas, se aproxima delas, as escuta e torna sua câmera uma extensão de si; onde ela é bem-vinda, sabe que será acolhido, onde não é, respeita a vontade e procura revelar que sua presença é amigável. Suas ações lhe possibilitam conhecer a cultura da vila, mas também lhe trazem problemas, o colocando no centro de discussões familiares e da própria tradição daquele povo. Tornando-o de convidado especial em réu. 

A sensação que fica é a de que o diretor não esperava que suas narrativas – “Sem ursos” que documenta na Turquia e os registros de sua estadia na aldeia – se cruzassem e se complicassem tanto em apenas nove dias. Como o título do filme faz alusão, “os ursos são histórias contadas para assustar”, de predadores, de pessoas que seguem um caminho errado. Mesmo que nos indaguemos sobre qual ponto de vista estaria esse erro,  predomina a impressão de que eles conseguem acertar as figuras que não se alinham as tradições, superstições e ao poder que impera seja no país ou na pequena vila em que Panahi se encontra. E, no centro dessa conjuntura, há uma reflexão sobre liberdade e como a imagem influencia pessoas, situações e a esfera política de um microcosmo. 

Ainda que não queira quebrar regras e tradições, Panahi confronta costumes que não entende. Quando decide não cruzar a fronteira de forma ilegal, uma de suas falas me chamou atenção: “Se é tão fácil, por que é tão complicado atravessar?”. No mar de dicotomias e dialéticas, a permanência e sua constante e consistente manifestação artística abrem margens para que questionemos até que ponto essa expressão vale a pena. Não seria mais prático, mirar a divisa geográfica e retornar? 

“Sem Ursos” é a prova de uma veia insubmissa de Jafar Panahi e da provocação de sua arte como instrumento de choque, violência e de perigo para aqueles que a atravessam, incluindo o próprio cineasta. Uma evidência de sua genialidade e da tentativa de fuga das prisões contemporâneas – sejam físicas ou remotas.