Pode parecer uma enorme coincidência filmes como “Nunca Raramente Às Vezes Sempre, “Unpregnant” e outros terem sido lançados com apenas poucos meses de diferença e sob o mesmo tema: a complexidade de uma jovem mulher lidando com o aborto. Agora, chegou a vez do longa independente francês O Acontecimento lidar com essa pauta tão urgente – e atual.

Afinal, vivemos um período em que o caso Roe contra Wade inflama os Estados Unidos com a possibilidade dos juízes da Suprema Corte derrubarem o direito ao aborto, estabelecido em decisão histórica em 1973. Todo esse processo social e político reflete e mais do que justifica termos uma safra de produções que reafirmam  a importância do discurso sobre a legalização. 

Ganhador do Leão de Ouro do Festival de Veneza 2022, “O Acontecimento” surge neste contexto. A produção baseada no romance homônimo de Annie Ernaux tem roteiro e direção de Audrey Diwan, integrante da “Collectif 50/50”, ONG francesa que luta pela igualdade entre homens e mulheres na indústria. 

No filme, acompanhamos a jornada de Anne (Anamaria Vartolomei), uma promissora jovem estudante de letras, lidando com a vida acadêmica e os impasses com sua mãe. Certo dia, ela descobre uma gravidez inesperada e indesejada. A jovem passa por momentos desesperadores na luta contra um sistema opressor da França, em 1963, para conseguir realizar o aborto.

LUTA SOZINHA

Das escolhas proeminentes do longa, deve-se constatar a predileção pela proporção próxima ao 4×3 – uma escolha cada vez mais usual para os cineastas – que tende a isolar completamente o corpo da protagonista. Seja na busca solitária de Anne por respostas ou durante o procedimento cirúrgico clandestino, Diwan quer, quase de forma obsessiva, mostrar que essa é uma batalha que uma mulher enfrenta sozinha, consigo mesma e às escuras – o que é sempre fomentado pelos planos verticais.

A fotografia elaborada por Laurent Tangy, parceiro habitual da cineasta, transparece na clara dicotomia entre o azulado do dia contra o calor refletido pelos tons mais fortes, principalmente o vermelho do figurino, presentes nas cenas que se passam em ambientes fechados.

Ao adaptar Ernaux e terminar o longa com as palavras libertadoras de Victor Hugo – símbolo da dramaturgia francesa e ativista dos direitos humanos – O Acontecimento mostra a complexidade e a constatação de que a saúde pública segue como tema constante, preciso e desafiador.