Muitos diretores fazem, uma vez na carreira, um filme sobre Hollywood. David Robert Mitchell, talento revelado pelo ótimo terror A Corrente do Mal (2015), não esperou muito para fazer o dele: seu terceiro filme, O Mistério de Silver Lake, pode-se dizer, é o seu Cidade dos Sonhos (2001). O paralelo com o longa de David Lynch é válido, pela temática, e até um dos atores de Cidade, Patrick Fischler e sua cara marcante de maluco, aparecem com destaque em Silver Lake. Claro, o filme de Mitchell não chega nem aos pés do de Lynch… Mas isso não significa que a visão do diretor sobre a capital do cinema não seja intrigante a seu modo e digna de atenção.
No filme, Andrew Garfield interpreta Sam, um sujeito que tem um apartamento em Hollywood – embora nunca o vejamos trabalhando nem fazendo nada para ganhar dinheiro que o permita morar lá. Um dia, ele tem um pequeno flerte com uma bela jovem que é sua vizinha, Sarah (Riley Keogh) – depois de espioná-la! Antes de ele conseguir qualquer coisa com ela, Sarah e suas coisas desaparecem no meio da noite. O resto do filme mostra Sam tentando encontrá-la, e topando com esquisitices cada vez maiores no caminho: mensagens escondidas em letras de músicas, um milionário desparecido, assassinatos de cachorros, um compositor misterioso e um culto (obrigatório em se tratando de Califórnia, né?). É uma viagem maluca.
Ao longo do tempo, ele também espiona, à distância, várias mulheres. O Mistério de Silver Lake, em vários momentos, parece ser uma reflexão do seu diretor/roteirista sobre o male gaze, aquela expressão em inglês que designa o olhar masculino e sexualizado sobre as mulheres. O protagonista espiona garotas com binóculos, com um drone, as segue num barquinho – em uma cena que evoca outra parecida em Chinatown (1974) – as segue em festas… É curioso o quanto isso acontece ao longo do filme, e também é curioso o retrato dos homens na obra: são todos paranoicos, patéticos, e o melhor amigo do herói só é visto bebendo ou jogando videogames. Antigos, ou melhor, vintage, no caso…
Pode-se até interpretar O Mistério de Silver Lake como uma visão sobre a diferença entre homens e mulheres, como a história de um cara em busca de uma garota que simplesmente não está nem aí para ele. O protagonista é levado pelo seu male gaze, uma fantasia que não corresponde às suas expectativas, e nesse sentido, é apropriado que o filme seja ambientado na terra do cinema, da ilusão. Silver Lake é um filme sobre outros filmes, e Mitchell tem consciência total disso: desde o começo com seu clima hitchcockiano, algumas cenas à la Brian De Palma, a já mencionada participação de Fischler – ator lembrado pela inesquecível e assustadora cena do beco em Cidade dos Sonhos – e toques de Fellini, Juventude Transviada (1955) de Nicholas Ray e mistérios noir, as referências são muitas. A própria locação do apartamento do herói remete a O Perigoso Adeus (1973) de Robert Altman – isso, e a vizinha constantemente topless. Ora, numa cena Mitchell faz Garfield grudar a mão suja de chiclete numa revista do Homem-Aranha!
ESTRANHAMENTO HIPNÓTICO
É uma visão irônica da vida em Hollywood, mas que não parece muito bem saber o que quer, ou mesmo se há algo a mais para sustentar essa visão. A angústia do protagonista é a mesma do filme, a de não saber muito bem onde se encaixa entre a nostalgia do passado e o mistério do futuro. Porém, só essa sensação não consegue carregar o filme, e com 2 horas e 19 minutos de duração, O Mistério de Silver Lake parece em alguns momentos perdido e autoindulgente.
Apesar disso, ainda consegue prender a atenção e é carregado pela atuação de Garfield, aqui um pouco mais maluco do que de costume. Alguns momentos de humor e tensão, e algumas belas cenas visuais criadas por Mitchell e seu diretor de fotografia Mike Gioulakis, chamam a atenção, como a cena com dois personagens nadando no reservatório à noite. O Mistério de Silver Lake meio que atira para vários lados, mas, na maior parte do tempo, é estranhamente hipnótico.
E ambicioso: ninguém pode acusar David Robert Mitchell de não ter se arriscado com uma obra tão estranha tão cedo na carreira, e basta nos lembrarmos de nomes como Richard Kelly – diretor de Donnie Darko (2001) que hoje está no limbo – e Nicolas Winding Refn – cada vez mais perdido dentro do seu próprio buraco negro depois da aclamação de Drive (2011) – para constatarmos que Mitchell até que se sai relativamente bem. Grandes nomes do cinema já fizeram obras sobre Hollywood e as pessoas esquisitas que vivem lá: Lynch e Altman, Billy Wilder, os Coens, Paul Thomas Anderson… Mitchell não se junta a essa lista, claro, mas seu sonho maluco movido a cinema e tesão reprimido é até interessante.