Desde o momento em que foi anunciado, “Os Fabelmans” é vendido como o filme sobre a vida de Steven Spielberg, auto cinebiografia no melhor estilo do que fizeram recentemente Alfonso Cuáron (“Roma”) e Kenneth Branagh (“Belfast”).  

A nova obra do mestre de Hollywood, entretanto, se utiliza deste subterfúgio perfeito da temporada de premiações para focar em algo muito mais ambicioso: os poderes e os riscos assumidos por um realizador, a partir dos domínios da técnica, em relação aos seus personagens – fictícios ou reais -, ao público e a si próprio.  

OS PODERES POR TRÁS DAS CÂMERAS 

“O cinema é o modo mais direto de entrar em competição com Deus”, já dizia o genial Federico Fellini. Ainda que de modo inconsciente, tal ensinamento parece ter sido compreendido pelo pequeno Spielberg, ou melhor Sam Fabelman (Mateo Zoryan na versão mirim e o ótimo Gabriel LaBelle na fase adolescente), já na primeira ida ao cinema. Após assistir “O Maior Espetáculo da Terra”, clássico de uma era em que Hollywood temia perder terreno para a televisão e apostava nos espetáculos épicos de Cecil B. De Mille para resgatar o interesse nas telonas (alguma semelhança com hoje em dia?), o garotinho só quer saber de destruir os pequenos trenzinhos que ganhou para obter o controle da ação na hora de filmá-los. E assim o faz impressionando a mãe (Michelle Williams) que reconhece o talento do filho logo de cara. 

Ali está apenas um aperitivo do que veremos adiante em “Os Fabelmans” com Sam. Spielberg brinda o espectador com pequenas pílulas dos bastidores do cinema e de como se cria aquele mundo de faz de conta de forma lúdica e bastante trabalhosa. É uma delícia ver LaBelle orientando a movimentação em cena com aquela calma apaixonada e descritiva tão conhecida do cineasta assim como o vemos desfilar referências à própria carreira: impossível não abrir um sorriso nos fanservices de “Poltergeist”, “E.T” e “O Resgate do Soldado Ryan”. 

Se não chega a ser surpreendente estes bastidores, chama a atenção para o espaço dedicado ao processo de montagem em “Os Fabelmans”. Como um apaixonado por contar histórias e um cineasta dos mais técnicos da história, Spielberg compreende de forma absoluta como uma obra audiovisual se define na sala de montagem.  

Não à toa os planos detalhes e fechados nos rolos e nas partes de filmes em uma época que a montagem era (literalmente) manual. Por trás deste jogo de encaixe de peças, nasce a emoção do público: a vibração e aplausos da plateia de escoteiros assistindo as combinações e pequenos truques bem-executados daquele adolescente – repare como os filmes dentro do filme principal possuem uma montagem dinâmica – lembra o que Spielberg atingiria em escala planetária tempos depois, estabelecendo uma metalinguagem fascinante. 

Spielberg, entretanto, enxerga o processo de montagem e direção de um filme para além da celebração do ato cinematográfico e o poder de guiar emoções. Há riscos no meio do caminho, como bem alerta seu tio em uma participação marcante de Judd Hirsch.  

O DUELO DE UMA VIDA  

Controlar um universo não significa totalmente estar imune ao que ele pode revelar. Se o cinema é uma janela para enxergar o outro, como afirmava o mestre Narciso Lobo, o protagonista de “Os Fabelmans” descobre que seus filmes falam bastante sobre o seu entorno, revelando, no fim das contas, muito sobre si próprio. 

Montando com muita má vontade um pequeno filme sobre a viagem de fim de semana da família, Sam descobre nas entrelinhas um segredo da mãe – fato real vivido pelo próprio Spielberg –, envolvendo o tio (Seth Rogen, discreto) e o pai (Paul Dano, ótimo para variar). Para além da quebra do sonho familiar tão típico daquela época, o fato escancara uma tensão existente no lar que, entre outros aspectos, simboliza o duelo da vida do protagonista: assumir o risco de seguir a desafiadora na arte ancorada presente na veia lúdica da mãe ou optar pela segurança de uma profissão mais tradicional representado pelo pragmatismo paterno.  

A própria relação entre Sam e os dois simboliza o conflito, sendo sempre à flor da pele com Williams e mais racional com Dano. O roteiro de Spielberg com Tony Kushner (parceiro dele em “Munique” e “Amor, Sublime Amor”), porém, demonstra sabedoria ao mostrar as nuances multifacetadas de ambos os personagens com a mãe sempre preocupada até por carregar os medos herdados do próprio passado e o pai fascinado pelo talento do filho. Esta tensão segura muitos momentos em que “Os Fabelmans” parece perder força como no filme adolescente bobinho de bullying, visto já mil vezes em produções do gênero e alongando o drama mais do que o necessário. 

Equalizar a balança entre as diferenças de perspectivas mãe e o pai mostrando como as duas juntas o formaram, talvez, tenha sido a principal missão de Steven Spielberg ao olhar para si e fazer “Os Fabelmans”. O resultado é um dos melhores filmes recentes da carreira do diretor – na minha visão, meu preferido desde “Munique” – e que nada seria se o horizonte ficasse no meio. Seria chato para cacete.