Todos conhecemos o rosto de Cate Blanchett, mas há algo novo em sua face neste “Tár”. Naturalmente, é próprio do ofício do ator, principalmente em certas escolas mais naturalistas, a mutabilidade, a maleabilidade do visual, do rosto, do corpo. Mas, repito, há algo de novo no rosto de Cate Blanchett. 

Talvez possa nos ajudar, nesse caso, lembrar da fala de Bob Dylan sobre a voz de Roy Orbison: “ele cantava como um assassino profissional”. Algo em Cate Blanchett – ou melhor, em Lydia Tár – parece refletir esse sentimento. Renomada compositora, acadêmica e maestro, ela tem olhos aquilinos e maçãs do rosto pontudas como facas, e move suas mãos como uma hipnotista durante a entrevista que abre o filme. 

Essa entrevista, uma cena de pouco mais de 10 minutos, é o primeiro “setpiece conversacional” do filme, por assim dizer. Isso porque Todd Field, diretor e roteirista de “Tár”, investe em longas cenas de diálogo durante o primeiro terço da obra. 

É assim com a supracitada entrevista, mas também com a conversa à mesa travada com o Eliot de Mark Strong, espécie de maestro rival de Lydia Tár. E, principalmente, é o que temos com a cena da aula ministrada por Tár na Julliard, conceituada escola musical. Mais sobre ela daqui a pouquinho. 

É difícil ser um gênio

São cenas tremendas, realmente, porque Field parece ter feito seu dever de casa: o grande problema de escrever um personagem genial é convencer o público dessa genialidade – o que significa que, enquanto roteirista, é preciso ter alguma genialidade para imbuir o personagem. Ou, no mínimo, emular a genialidade muito bem. 

Em se tratando de Lydia Tár – que, ficamos sabendo, tem um currículo impossivelmente brilhante –, Field convence. Não só: a gente chega a ficar com o cérebro zunindo, mas nunca desiste de tentar acompanhá-la, tão magnética é sua presença, tão singular é seu fraseado. Aqui, os créditos cabem a Blanchett também, é claro. 

Mas essas cenas conversacionais também têm outra singularidade: são performances públicas. Seja na entrevista, na sala de aula ou, por fim, em um almoço de trabalho, Tár precisa se mostrar para o outro, jogar o jogo social. Essa capacidade, descobrimos, é parte do seu gênio. Certamente, em todo caso, sua genialidade só pode ser celebrada porque ela entende a importância do jogo. 

Montando o quebra-cabeças

Só podemos, então, imaginar o quanto de ambição, qualidade criativa e escrotidão é preciso ter para chegar aonde a brilhante maestro chegou. Ao longo do filme, são diversos os exemplos que Field nos oferece desses três aspectos na vida de Tár, que está presente em todas as cenas do longa. 

Nós a vemos fazendo aulas de boxe e nós a vemos conduzindo sua orquestra durante os ensaios da 5ª Sinfonia de Mahler. Nós a vemos cortando um limão siciliano e nós a vemos compondo uma peça ao piano. 

Essas cenas se encerram, por vezes, de forma inesperada, pequenos fragmentos contidos em si mesmos que se relacionam com o todo de forma elíptica, no máximo. Contrastando com sua fachada pública/profissional, Field está interessado em pequenos vislumbres da mente de Tár em ação – como quando ela ouve uma campainha em sua casa e incorpora aquele som à sua composição. 

É um mosaico lentamente construído ao longo de mais de duas horas e meia. A duração longa compensa: as peças do quebra-cabeça são postas à mesa cuidadosamente e nosso prazer é tentar encaixá-las, desvendar de uma vez por todas o que move aquela mulher. 

A tal da cena na sala de aula da Julliard, por exemplo, filmada em um longo plano-sequência no começo do filme, ressurge como payoff lá para as duas horas e tantas. Dessa vez, no entanto, ela assume uma forma truncada que contrasta, justifica e subverte a escolha formal pelo plano-sequência, para começo de conversa. 

As peças antes desordenadas vão se encaixando e aquela mulher começa a se mostrar uma predadora. Já estava claro antes, pela sua posição neste jogo de homens poderosos da elite musical, que não se pode entrar nesse mundo sem um certo tato burocrático, um certo conhecimento das maquinações do poder. No final, você sai como um dos maiores gênios vivos, mas também como uma predadora sexual de meia-idade patética. 

No fim das contas, as instituições que mantêm as engrenagens da Grande Arte girando não são mais do que um punhado de burocratas bajuladores e interesseiros. É difícil ser um gênio, de fato.