É muito difícil encontrar uma adaptação audiovisual de um livro que consiga superar a obra original. “The Underground Railroad”, entretanto, não apenas alcança este feito como também atribui novas perspectivas ao romance homônimo escrito pelo premiado Colson Whitehead.
Antes de falar sobre a série lançada na Amazon Prime Video, é preciso explicar que existe a prerrogativa para classificar a obra como uma fantasia histórica, pois a “The Underground Railroad” – ‘A Ferrovia Subterrânea’, em tradução literal – historicamente existiu de fato. Eram rotas de fugas de negros durante a escravidão para estados livres nos EUA, mas, que, na narrativa transforma-se literalmente em uma ferrovia subterrânea com um trem que passa para resgatar os escravos fugitivos e conduzi-los a uma estação.
A minissérie dirigida, escrita e produzida por Barry Jenkins (“Moonlight”) apresenta uma observação histórica da escravidão e da população negra nos Estados Unidos do século XIX. Diferente de projetos como “Roots”, minissérie exibida no Brasil pela Globo em 2017, focada em apresentar as gerações escravizadas por meio de longos períodos, em “The Underground Railroad”, a perspectiva principal está em Cora (Thuso Mbedu), uma jovem negra abandonada pela mãe em uma fazenda escravocrata buscando fugir para algum lugar em que possa ser livre. Apesar de ser fácil apontá-la como a protagonista da narrativa, no decorrer da história, fica bem claro que o real protagonismo é a luta pela liberdade, a liberdade em um sentido bem mais amplo e complexo da palavra.
MAESTRIA NA DIREÇÃO, FOTOGRAFIA E TRILHA
À medida em que “The Underground Railroad” situa as histórias de Cora e seus companheiros de jornada em vários estados escravocratas, o público descobre como os brancos encontraram novas formas de mantê-los aprisionados. Através do racismo nas estruturas sociais, os negros enfrentam limitações de acesso à propriedade privada, controle de natalidade e uso da religião como justificativa de perseguição e extermínio racial
Existe também a retórica entre os próprios negros que, para conseguir a sua liberdade, você precisa comprá-la. Nada mais do que uma lógica capitalista intrínseca à sociedade estadunidense, mas, frágil na prática.: com poucas demonstrações, fica claro que comprar a alforria não garantia liberdade, pois, as pessoas brancas encontraram formas de suprimi-la. A questão principal sempre é a ausência de compreensão de que os negros também são humanos e merecem ser tratados com igualdade social.
Barry Jenkins domina a história com tanto controle e maestria nos fazendo questionar até mesmo se isso poderia ser chamado televisão e não de cinema: o trabalho de autor é notável, mesmo que ele não tenha escrito todos os episódios. Além disso, ele evita se prender a formatos fixos como episódios de uma hora, buscando contar a narrativa no tempo que ela precisa para ser completa. Ao término de cada episódio, o diretor insere uma canção contemporânea feita por artistas negros para reforçar que a mensagem de “The Underground Railroad” ainda é relevante e que alguns problemas daquela época ainda se mantém vigentes.
Cada take na série parece ser desenhado para causar no espectador uma aflição tão grande que é insuportável rever os horrores que aparecem na tela. A fotografia de James Laxton (parceiro de Jenkins de “Moonlight” a “Se a Rua Beale Falasse”) é extremamente bela e realça a luz natural dos ambientes abertos e das paisagens dos estados sulistas norte-americanos. Já a trilha sonora de Nicholas Brittel, ao mesmo tempo em que é encantadora, consegue ser tão angustiante que poderia ser usada até em um filme de horror.
BELEZA E HORROR
Não existe um personagem sequer mal escrito, todos são complexos e com momentos impactantes contando com atuações brilhantes. Cora é interpretada pela sul-africana Thuso Mbedu que carrega uma das performances mais brutais de 2021. Silenciosa, discreta, ela carrega no olhar os traumas de uma vida trágica; é possível sentir o ódio, a tristeza e o sofrimento na tela, uma verdadeira força da natureza. Outro destaque é o Joel Edgerton como Arnold Ridgeway, um caçador de escravos que quer a qualquer custo capturar Cora. O personagem ganha uma história de fundo bem detalhada na narrativa que pode causar falsamente uma sensação de humanização, mas, revela o quão mesquinhas são suas motivações para trabalhar com este ofício, gerando no espectador mais repulsa ainda a sua figura.
Minha única crítica negativa foi o fato da série ter sido lançada completa de uma vez só The Underground Railroad precisava de um episódio por semana para ressoar por mais tempo com o público fazendo-o refletir o que havia acabado de assistir, ela não foi criada para assistir de uma vez, é humanamente impossível. Qualquer ser humano fica afetado com o que é mostrado, mas, mesmo assim, ainda existem momentos de poesia, beleza e, acima de tudo, potência.
Com as imagens mais belas e aterrorizantes que você verá este ano, Jenkins nos oferece uma experiência completa e satisfatória em um ano de histórias geniais na televisão e nos serviços de streaming, The Underground Railroad brilha e marca seu espaço como uma das obras televisivas mais completas já produzidas.