Desigualdade social, violência e repressão, machismo, homofobia, desmatamento, corrupção, intolerância… Não é de hoje que o mundo não anda bom e a pandemia da COVID-19 só veio para piorar ainda mais um pouco. Diante disso tudo, quem nunca sentiu vontade de fugir e deixar todos estes problemas para trás em busca de um planeta melhor, mais justo? Este sentimento domina dois dos melhores curtas-metragens da mostra competitiva do Festival de Gramado 2020, ambos vindos do Nordeste: o pernambucano “Inabitável” e o alagoano “Trincheira”.
Dirigido por Paulo Silver, “Trincheira” se passa em um lixão localizado ao lado de um condomínio de luxo. Lá, encontramos um garoto, interpretado por Gabriel Nunes Xavier, colocando a imaginação à prova, utilizando todos materiais quebrados para criar um universo particular e lúdico em meio a uma injustiça social entre dois mundos que parecem separados por galáxias de distância.
“Trincheira” é daqueles trabalhos singelos em que as injustiças de algo tragicamente tão comum das grandes cidades brasileiras se apresenta a partir de forma onírica, sendo a pureza do garoto um contraponto chocante ao que a estrutura social brasileira tem a lhe oferecer. De maneira habilidosa, o curta costura a sua estrutura narrativa através das imagens sem a necessidade de diálogos, o que permite à direção de arte, feita por Nina Magalhães, brilhar: afinal, é a partir dos objetos encontrados pelo garoto e a reinvenção destes, como visto na magnífica homenagem ao DeLorean versão reciclada, que a arte e a imaginação tornam-se caminhos possíveis para a cruel realidade.
Não que o curta busque ser uma fuga escapista, pelo contrário, afinal, a solidão do garoto exemplifica este olhar de indiferença sobre o outro no Brasil – uma antecipação do que vemos na pandemia, quando a morte de 140 mil pessoas se tornou um inconveniente para muita gente. Os muros seguem sendo erguidos por uma elite que busca fugir e virar as costas para os problemas do país, às vezes, tão próximos dela, enquanto cabe ao menino encontrar formas de se proteger e lutar para não ser dragado por este ciclo odioso de desigualdade.
Com destaque ainda para o desenho de som do próprio Silver em parceria com Pedro Macedo e a animação dos créditos finais, “Trincheira” é uma grata surpresa ao conseguir ser, ao mesmo tempo, duro e delicado, real e imaginário.