No princípio, há a imensidão do rio, a natureza exposta. Logo, um corpo aparece, com uma blusa amarela, se despe. O corpo nu entra na água, mergulha, some. Esse é início de um documentário poderoso e potente. Uýra, a entidade das matas, se conecta com a natureza, some diante dela, faz parte dela. Sua voz em off diz: “eu gosto de recordar todo dia ao amanhecer: o que estamos vivendo não é um processo natural, mas uma fase a mais de uma guerra que nunca cessou”.

E esta guerra não é silenciosa. Não é de agora. Vem de muito antes. A história do Amazonas e da Amazônia se fragmenta ainda no processo civilizatório em que o Brasil sofreu por interferências eurocentradas. Nossa região, o inferno verde como bem diz Euclides da Cunha, foi corrompida, deflagrada e violentada, assim como os seus povos originários e, consequentemente, os africanos que vieram escravizados de África.

O nosso verde, a nossa água, a nossa natureza, a terra que nos sustenta e nos acolhe a duras penas, há muito tempo necessita de uma visão mais amplificada, centralizada nela, no seu povo, na sua preservação. Ouvir a sua voz. Necessita de uma mudança drástica, pois o que nos cerca é a nossa vida, nossa força.

A drag queen UÝRA usa do seu corpo, dos seus conhecimentos e intelectualidade para conscientizar a urgência de falar dos povos originários, da negritude, do ribeirinho, da fauna e da flora amazônica, do seu povo, da sua memória, da sua ancestralidade. Em um país sem memória e que desmata demasiadamente, que mais mata travestis e pessoas trans, ativistas ambientais e pretos, é essencial um corpo como este, um corpo político que ecoa além dele o desespero de uma mudança e conscientização.

“periferia é uma floresta também”

UÝRA é uma figura poderosa, grandiosa. O seu corpo e os elementos da natureza se confundem quando se interconectam. A sua sensibilidade e clareza extrapola todos os limites convencionais. Não é de hoje que, aqui em Manaus, ela vem ganhando força e seguidores. Agora, ganha o mundo com “Uýra – A Retomada da Floresta”, documentário dirigido sensivelmente por Juliana Curi. A própria UÝRA é uma das produtoras do filme, entendendo que o seu protagonismo não é unitário, todos são protagonistas dessa história de se proteger e se unir ao bem comum.

As matas, o rio, as ruas, a periferia são peças fundamentais na construção de sua arte. Em determinado momento ela diz que a “periferia é uma floresta também”, e não poderia estar mais correta. Pois é na periferia que se encontram os diversos, os excluídos, os descentralizados e esquecidos do poder do Estado. Os múltiplos que se conectam. O lugar dos “pretíndios”.

Entre os diversos depoimentos em “Uýra – A Retomada da Floresta”, chama a atenção de um senhor que diz que aquele local costumava ser um igarapé em que as famílias se encontravam e se divertiam. Hoje, encontra-se poluída. Infelizmente, comum na cidade de Manaus: os aterramentos ou a poluição por completo das águas doces que cercam a cidade. Mesmo respirando o verde e cercado do rio, “Manaus é a cidade que mais desperdiça água no país”, diz UÝRA. Um alerta. O seu dever como corpo político e herdeira se faz necessário. E a culpa é de quem? Quando não há saneamento e políticas públicas eficazes?

Outro momento importante é quando ela conversa com as crianças de uma comunidade indígena acerca da Mãe Mata, nossa guardiã. Enquanto acadêmica, ela educa de uma forma impactante, que causa furor, não se precisa de metodologia quando seu corpo e o cotidiano e a urgência falam por si. Ainda assim, é preciso instrução, construir diálogos.

O LEGADO DO PASSADO ANCESTRAL

O documentário de Curi e ÚRYA, de UÝRA e Curi e de diversas mãos igualmente ansiosas pela mudança, é muito mais que um filme. É um manifesto. Na mata, “tudo que morre vira vida aqui dentro”, diz ela. É preciso saber caminhar, olhar para trás, ver o passado ancestral para manter esse legado, ainda que fragmentados.

A oficina de maquiagem também é um importante momento de “Uýra – A Retomada da Floresta”. Penso que é um processo de armadura, como se a maquiagem fosse a fortaleza que protege o corpo pronto para guerra, pronto para combater os absurdos que estamos vivendo, os alertas, o clima cada vez desregulado e a população cada vez mais carente de identidade, de memória e preservação. É uma imersão em si para redescobrir as forças que a sociedade manipuladora, racista, etnocida e genocida, insiste em calar, em ferir, em matar. Mas estas vozes, juntas, ecoam e estão prontas para o combate e não é um combate solitário. Toda uma comunidade na sua aldeia, no quilombismo, está disposta para ir à luta.

A antropóloga africana Marimba Ani nos diz que a cultura é o nosso sistema imunológico. A cultura em sua visão sofre de um vírus cruel e danoso: o sistema cultural eurocêntrico. Esse vírus contamina, nos adoece, nas suas reproduções sociais e vamos além, no desmatamento e na não preservação da natureza, ela também faz parte do nosso sistema imunológico. É tempo de cura, portanto, e UÝRA trabalha e leva essa palavra, agora, para o mundo inteiro a importância da ancestralidade, reconhecer os saberes daqueles que vieram primeiro e compreender que não estamos sozinhos.

Certa vez uma amiga falou mais ou menos isso sobre UÝRA: “com ela, qualquer filho da p*ta se sensibiliza”. Quero crer que essa seja uma afirmação verdadeira, pois ela não passa despercebida e nem quer. Nós precisamos dela. Precisamos reconstruir para continuar existindo, alertar para continuar existindo, manifestar para continuar existindo e existir para o ancestral que sofreu para que estejamos aqui, continue existindo.

“Uýra – A Retomada da Floresta” é um filme necessário, profundo, sensível e explosivo.