Pearl é, ao mesmo tempo, um estudo de personagem e uma homenagem a um estilo de cinema do passado. O diretor do filme, Ti West, é apaixonado por gêneros e estilos, como se nota por toda a sua carreira: passando pelo terror independente A Casa do Diabo (2009), a história de fantasma Hotel de Morte (2011), o found-footage O Último Sacramento (2013) e o faroeste Terra Violenta (2016), nota-se que ele sempre tentou trabalhar dentro de estruturas de gênero e com variações de estilo. Todos esses filmes são bons, em maior ou menor grau; porém, quando ele fez X: A Marca da Morte (2022), algo deu um “clique”, especialmente, ao se juntar com a atriz Mia Goth.

Porque Pearl é tanto um filme dele quanto dela: sabe-se que os dois tiveram a ideia para este filme enquanto rodavam X na Nova Zelândia, em uma fazendinha no meio do nada, enquanto a pandemia de Covid-19 engrossava pelas redondezas no começo de 2021. Goth, como a maioria dos atores, inventou um passado, um background para a personagem – na verdade, em X ela interpretou tanto a protagonista Maxine, cujo sonho era ficar famosa por meio de um filme pornô, quando a antagonista, a idosa e psicótica Pearl. Esta última exerceu uma fascinação especial sobre a atriz. West notou o potencial, e eles desenvolveram toda a história. E a locação e a estrutura já estavam lá, disponíveis…

Acima de tudo, em Pearl vemos tudo pelos olhos da trágica heroína – quem assistiu a X sabe que ela, décadas depois, vai se mostrar uma assassina. Mas neste filme, estamos em 1918, em uma comunidade que teme a epidemia de gripe espanhola – vários figurantes e até alguns atores principais aparecem usando máscaras, o que só adiciona ao efeito curioso do filme. A jovem Pearl (Goth) é filha de imigrantes alemães, o pai dela é inválido e a sua mãe é um terror. Ela sonha em fugir da fazenda, ama cinema e quer ser atriz. Numa cena-chave do longa, ela dança – e faz outra coisa – com um espantalho no meio do campo. Mas, como vamos descobrir durante a história, muitas vezes o que a realidade da vida oferece não entra em acordo com nenhum sonho, ainda mais para uma pessoa que já não bate bem da cachola em primeiro lugar.

HOMENAGENS AO CINEMA

Pearl, então, é um estudo de personagem. Como toda prequel, é uma obra que se dedica a explicar o que ocorreu antes de outra. Porém, West e Goth não estão tão interessados nisso. O mais importante, para eles, é plantar as sementes da psicopatia, mas enfocando-a sob o ângulo de uma tragédia com toques de sarcasmo. Mesmo sabendo que há algo errado com ela, não se consegue deixar de sentir empatia, pena mesmo, pela protagonista e as circunstâncias da sua vida. De fato, quando ela começa a matar gente na segunda metade do longa, a sensação é de catarse. Não há um psicologismo, os cineastas não querem mostrar quem é Pearl por meio do trauma X ou incidente Y. A abordagem é mais emocional: eles nos fazem sentir o lado trágico, que alimenta o lado insano, de sua heroína.

Mas Pearl é também um FILME, em maiúsculas: a fotografia de Eliot Rockett só pode ser descrita como “gloriosa”. Buscando se aproximar do esplendor em Technicolor de clássicos como O Mágico de Oz (1939) ou …E o Vento Levou (1939), o mundo de Pearl é supercolorido, com a cor vermelha se destacando e sendo usada de modo inteligentíssimo em algumas passagens. Há os ocasionais momentos de sombras, mas este é um filme de visual belo que vai ficando sombrio em certos trechos, mas nunca deixa de encher os olhos. Não é à toa que o espantalho com quem Pearl dança lembre o de Oz… Há até uma cena musical num determinado momento! Se X tinha um visual inspirado em O Massacre da Serra Elétrica (1974), com cores quentes e granulação, Pearl é mais refinado e bonito, e essa beleza contrasta com o espetáculo sanguinolento com grande efeito em determinadas cenas.

E, claro, é a atuação de Mia Goth que faz tudo funcionar, que dá alma a algo que poderia ser apenas um filme belo, mas bizarro. É uma atuação destemida, que não tem medo de encarar um longo monólogo de cerca de dez minutos no qual ela verbaliza e expressa o horror de sua vida, ou de usar cada músculo do rosto como uma espécie de versão feminina do Jim Carrey nos créditos finais. Se em X a conjunção West-Goth já tinha empolgado, aqui então eles criam juntos praticamente uma tempestade perfeita. E o fato de a atriz fazer papéis duplos em ambos os filmes abre a porta para fazer um interessante comentário sobre a condição feminina em diferentes momentos do século XX, sem com isso sacrificar o entretenimento, o suspense e o banho de sangue.

Na verdade, ao fim de Pearl o que fica realmente na memória não é nem tanto o sangue, mas sim o próprio dilema da protagonista. Neste Psicose (1960) feminino e colorido – Pearl e Norman têm alguns traços em comum – um dos momentos mais fortes é vermos uma pessoa mal se agarrando à sanidade, e expressando esse conflito com a face. Em um filme que às vezes se assemelha a um sonho colorido, outras um pesadelo, esse momento consegue a façanha de parecer ao mesmo tempo engraçado, bizarro e terrivelmente real.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.