Legado é a palavra que definiu a primeira temporada de “Watchmen”. Criada por Damon Lindelof (“Lost”, “The Leftovers”), a série é uma adaptação da graphic novel homônima de Alan Moore e Dave Gibbons. Diferentemente do filme dirigido por Zack Snyder, o showrunner fez um remix, ou seja, uma continuação do universo criado na HQ original, respondendo a perguntas que ficaram e, principalmente, mostrando como o mundo reagiu ao ataque interdimensional da lula gigante – ponto alto da HQ. O resultado consiste em uma das melhores produções do ano.
A produção da HBO consegue resgatar e perpetuar o clima inquietante, ameaçador apresentado por Moore e Gibbons. Seguindo o ritmo apresentado na HQ, o roteiro se debruça em discutir temas pertinentes à política contemporânea. Se, no primeiro momento, “Watchmen” preocupou-se em discorrer sobre a Guerra Fria, o seriado abre espaço para uma discussão atemporal: o conflito racial. Abandona-se a tensão em volta da guerra do Vietnã e dos conflitos ideológicos entre as duas grandes potências do século XX e introduz-se à narrativa o massacre de Tulsa, considerada a Wall Street Negra, em 1921, orquestrado pela Klu Klux Klan.
A cidade de Tulsa e os impactos causados por esse genocídio contextualizam a obra e conduzem o espectador a percepção de como esse fato, dito isolado, afeta os antigos personagens dessa história e os introduzidos por Lindelof. Desse modo, é notável o respeito e a absorção que ele tem pelo “Watchmen” original. Em algumas entrevistas, inclusive, o Lindelof chegou a comentar que a produção seria o novo testamento, enquanto o produto de Moore e Gibbons, o antigo. O resultado é a compreensão do mote central da narrativa e o casamento entre todas as tramas.
Um dos pontos interessantes da narrativa é o mistério envolto da trama dos personagens. Foram precisos sete episódios para o espectador ver as histórias se cruzarem e conseguirem juntar todas as peças do quebra-cabeça. Sem ter, diga-se de passagem, nenhuma experiência intragável no processo.
Personagens Carismáticos
Contando com um elenco com Regina King, Jeremy Irons, Tim Blake Nelson, Yahya Abdul-Mateen II e Jean Smart, temos a figura de Angela Abar (King) como personagem central. Acompanhamos sua vida como policial mascarada e a história de sua família para compreendermos os rumos que Adrian Veidt (Irons), Lauren Blake (Smart) e Dr Manhattan (Abdul-Mateen II) tomaram e como ainda influenciam na vida dos cidadãos norte-americanos.
Nesse quesito, é imprescindível o respeito do criador da série pelo cânone. Vemos como a segunda leva de Minutemen motivaria um país dirigido por Trump (apesar de Robert Redford ser o presidente na série), por meio da associação de Rorschach, um mascarado direitista, com a organização racista Sétima Kavalaria. Ao mesmo tempo em que há sensibilidade para mostrar que, apesar de ter o poder de um semideus, Dr. Manhattan é apenas uma marionete nas mãos do tempo e não pode impedir que qualquer plano se concretize.
Novas histórias
Lindelof precisava da presença de personagens tão cativantes, carismáticos e interessantes quanto os criados na HQ. Desse modo, ele não apoia a sua narrativa nos personagens clássicos, utilizando-os, no entanto, para demarcar referências e easter eggs que nos levem a acompanhar a história de Angela Abar. Até mesmo o deus desse universo inclina-se como um servo a trajetória da policial.
Por meio das alusões à obra original, é possível, por exemplo, encontrar respostas para mistérios que permearam os fãs da HQ e introduzir novas personalidades carregadas de carisma e mistério. Desta forma, conhecemos a identidade do Justiça Encapuzada (Louis Gossett Jr.) e as conseqüências da aparição da lula-gigante através do episódio de Looking Glass (Nelson). Todas essas tramas são desenvolvidas satisfatoriamente e atendem aos novos fãs e aos que tem mais apreço pelo universo da graphic novel.
ALTAMENTE RELEVANTE
A forma como Lindelof escolheu contar a história, imergindo em um personagem a cada episódio, já havia sido utilizada pelo autor em “Lost”. Nesse caso em específico, no entanto, manteve a curiosidade do espectador e a alta qualidade dos episódios, dando demonstrações do poder estético que a TV norte-americana tem, como, por exemplo, em “This Extraordinary Being”, uma aula de continuidade e do uso de contraste.
Ao escolher essa abordagem, os capítulos são permeados de mistérios, que quando resolvidos, lançam luz a novas indagações. Talvez este seja o motivo que tenha tornado os dois últimos episódios da trama mornos, já que a grande revelação da série foi apresentada no sétimo capítulo. Restou ao final da temporada amarrar as pontas soltas e utilizar de “milagres termodinâmicos” – como Dr. Manhattan chamaria as coincidências – para entregar um ciclo fechado.
Foram necessários 33 anos para que houvesse uma adaptação digna de “Watchmen”, Lindelof realmente consegue ampliar o cânone e atingir seu objetivo de mostrar a vida após os eventos do final da HQ e se tornar o novo testamento. “Watchmen” é uma produção indagadora e altamente relevante para a sociedade contemporânea, tornando-se este um verdadeiro legado para nós.