O “lobo solitário” é provavelmente um daqueles arquétipos mais comuns em filmes de ação: desde os faroestes americanos (como o Homem Sem Nome de Clint Eastwood) até filmes de celebridades do gênero (Chuck Norris, Steven Seagal) e longas de ação mais recentes (o Jack Reacher de Tom Cruise, ou quase qualquer filme recente de Tom Cruise, na verdade), o “lobo solitário” é aquela figura altamente especializada em algo (um ex-policial, um ex-agente, um piloto), que vaga pela sociedade sem lar, amigos e família, geralmente com um passado misterioso. Eis que o lobo surge no momento em que o mundo mais precisa de suas habilidades para resolver um conflito na base da porrada, e desaparece de novo ao final.

O motorista sem nome interpretado por Ryan Gosling em Drive (2011) é assim: surge do nada, sem passado. Fala pouco, mas tem altas habilidades por trás do volante. Trabalha como dublê em sequências perigosas com o carro. Nas horas extras, dirige para bandidos, para os quais dita previamente regras inflexíveis. Não há muito de diferente de outros heróis do cinema de ação a princípio. Mas tem algo que faz de Drive um novo clássico e justifica sua recepção laureada em Cannes, festivais e listas de melhores de ano de 2011, e sua marca na cultura pop desde então, da trilha sonora à famosa jaqueta do escorpião dourado, e isso está nas suas pequenas subversões do gênero de ação.

Afinal, a verdade é que Drive é muito mais um estudo de personagem vestido com peças de filmes de ação e romance. Apesar das comparações óbvias à violência gráfica de Quentin Tarantino ou ao Taxi Driver de Martin Scorsese, há pouco sangue e miolos em Drive e muito mais a atmosfera das obras de David Cronenberg ou David Lynch. Com exceção da já famosa sequência no elevador e mais algumas boas sequências de ação, o filme do dinamarquês Nicolas Winding Refn prefere se concentrar no universo melancólico de seu protagonista e dos outros ao seu redor, e, ao fazer isso, nos apresenta a um filme extremamente calculado, que assume ser quase um pastiche cinematográfico saído das décadas de 70 e 80, mas que funciona exatamente por sua direção meticulosa.

Drive, com Ryan Gosling

Desde a abertura que passeia pelo vazio de Los Angeles ao som dos sintetizadores de Nightcall, Refn situa seu filme em um tempo suspenso, frio e retrô. No mundo de Drive, as pessoas são solitárias e sem perspectivas (eu também poderia dizer no mundo real mesmo), e o motorista sem nome é o que melhor encarna essa personalidade, caminhando na linha tênue que envolve seu lado mais sombrio. Vizinho da garçonete Irene (Carey Mulligan, que inspira fragilidade e segurança ao mesmo tempo), o piloto se aproxima aos poucos da moça e do filho pequeno dela, criando laços de afeto com os dois. As coisas dão errado, porém, quando o marido dela sai da cadeia e, ao se envolver em um assalto mal-sucedido, põe em risco a vida de todos.

O completo controle da mise-en-scène por parte de Refn, o excelente visual e a atuação de todo o seu elenco são o que fazem de Drive um filme maior do que pareceria ser. O que seria uma atuação aparentemente blasé de Ryan Gosling, por exemplo, se esconde nos detalhes: os leves sorrisos do ator, a direção de seu olhar, e até mesmo o tom de voz calmo que diverge com o “sangue nos olhos” no momento em que interroga a personagem de Christina Hendricks. Mas não é só ele que fala pouco e chama a atenção: os outros personagens também, fugindo da verborragia “tarantinesca”: Albert Brooks brilha como o vilão, Oscar Isaac humaniza o marido recém-solto da prisão e Bryan Cranston encarna a pequeneza de uma vida destinada ao fracasso. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do relacionamento do motorista com Irene e o filho é contado numa só sequência, sem precisar de apelos emocionais, e com um ritmo impecável.

Drive, com Ryan Gosling

Enquanto isso, Refn esconde suas simbologias através da fotografia, dos jogos de luz, da ótima trilha sonora eletrônica de Cliff Martinez, e da violência que aparece sim, mas que sabe a hora de ser crua e causar impacto. Todos esses elementos são calculadamente combinados, e não há exemplo melhor que a tal cena do elevador já mencionada, que vai da sensualidade e carinho à brutalidade em questão de minutos. Não é todo filme de ação que se compromete a nos fazer realmente se importar com os personagens e acompanhar com calma suas ações e desenvolvimentos, sem explosões a torto e a direito. A palavra de ordem no longa de Refn é ritmo, e a montagem dinâmica que oscila entre dois tempos em alguns momentos ajuda a manter esse ritmo e, ao mesmo tempo, contrapor o comportamento dos personagens com sua natureza violenta.

Afinal, é sobre isso que Drive se debruça: a tristeza do motorista sem nome ao reconhecer a violência que guarda dentro de si, e, por conta disso, a impossibilidade em seguir um rumo feliz e tranquilo. Ao som de Kavinsky, Chromatics e outros exemplares do synthpop, Refn monta essa ode à tristeza, mas recheada de estilo, visuais cool e um clima badass no final. Poderia ser melhor? Poderia. Mas, por algum motivo, Refn assume os riscos, passeia pelo quase pedante e pretensioso e acerta. Nasce assim um novo clássico.