O diretor pernambucano Daniel Bandeira teve a honra de abrir o primeiro dia de atividades da sexta edição do Matapi – Mercado Audiovisual do Norte. Ele ministrou a masterclass “Construindo Narrativas” em que abordou aspectos de como contar boas histórias, compreendendo os potenciais narrativos locais, a construção de personagens, a abordagem das temáticas e a conexão com o espectador. A pergunta central da palestra certamente ecoa na cabeça dos participantes: qual é a sua inquietação enquanto realizador? 

A vinda de Daniel a Manaus ocorre em um grande momento para ele: “Propriedade”, o segundo longa-metragem na direção, foi eleito um dos melhores filmes de 2023 pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. Foi uma das duas obras brasileiras na lista ao lado de “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho. 

Protagonizado por Malu Galli, “Propriedade” mostra dois universos prestes a colidir, quando uma revolta de trabalhadores começa. Para se proteger do levante dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma reclusa estilista se enclausura em seu carro blindado. Mesmo separados por uma camada impenetrável de vidro, o conflito é inevitável. 

Nesta rápida entrevista concedida ao Cine Set, Daniel fala sobre a recepção nacional e internacional do filme, da experiência de fazer cinema de gênero no Brasil e o que considera ser um caminho interessante para o audiovisual nortista. 

Cine Set – Como recebeu a notícia de “Propriedade” na lista de melhores filmes do ano do Museu de Arte Moderna de Nova York? O que representa para você está ótima repercussão do filme? 

Daniel Bandeira – Foi incrível! “Propriedade” foi feito pensado em uma realidade brasileira, ligada à escravidão – a antiga e a 2.0 da nossa relação predatória de trabalho. Fiquei sempre curioso em saber como o público internacional, nem sempre tão conhecedor dos dilemas do país, iria receber o filme. Observo que há algo mexendo com as pessoas no exterior, especialmente, ligado a estes tempos de incomunicabilidade. É um bom exemplo de que você falar da sua aldeia acaba falando do mundo inteiro. Quanto aos critérios técnicos, também percebo que é reconhecida a excelência, domínio e know-how, capazes de transformarem estas inquietações em um produto que seja discutido e assistido nos mais diversos países. 

Cine Set – E sobre o público brasileiro? O que te chama a atenção na recepção de “Propriedade” nas exibições nos festivais? 

Daniel Bandeira Eu cresci no cinema de gênero: as ferramentas de audiovisual que desenvolvo vem muito dos filmes de suspense, de terror, dos thrillers policiais. À medida em que “Propriedade” passa nestes circuitos de festivais com estas características do meu trabalho, noto  certa surpresa na abordagem de um drama social através deste cinema de gênero. Isso ocorre por não ser comum obras deste tipo em eventos do tipo.  

Historicamente, o Brasil estabeleceu uma tradição mais realista ao abordar estas questões sociais delicadas, porém, eu proponho outro tipo de abordagem. O cinema de gênero traz uma pegada mais exagerada e até poética, mas, capaz de traduzir as inquietações do momento.   

Cine Set – Quais possibilidades o cinema de gênero oferece ao audiovisual brasileiro? 

Daniel Bandeira – Quando se pensa na história e contemporaneidade do Brasil fica muito claro como estamos rodeados de horror e superstições. Uma boa forma de você conhecer a sua comunidade é através destes medos. Acaba sendo um espelho que reflete o que te move, move a tua política, o que te protege e como quer construir teu mundo.  

O cinema de gênero não é estranho no Brasil, mas, percebo que vive um momento bastante favorável. Saímos de um período de pandemia traumático demais, estamos retomando a vida social, vivemos um momento político de divisão em que o medo é muito explorado. Logo, este tipo de filme, que busca contato imediato com o público, também tem a capacidade de entender as ansiedades de um povo e traduzi-los em imagens.  

Se você tem um medo muito grande, uma terapia para isso é olhar bem para aquilo que você teme e definir estratégias para que tome caminhos diferentes e possa seguir em frente. 

Foto: Juliana Pesqueira / Matapi 2023

Cine Set – Para quem inicia um projeto de escrita ou desenvolvimento de um roteiro, quais são os principais pontos que esta pessoa precisa ficar atenta? 

Daniel Bandeira – Considerando a escrita aquele momento em que você está sozinho no seu quarto tentando tirar algo da cabeça para colocar no papel, recomendo se cercar de obras de referências e pesquisas. Há uma tendência hoje de encarar a procrastinação como um inimigo, mas, ela vai acontecer. Agora, ela pode sim ser produtiva, afinal, você pode aproveitar este tempo para beber de outras fontes que pode incrementar uma ideia. Não tenha medo deste fluxo que sua mente irá criar.  

Cine Set – Gostaria que você falasse sobre o audiovisual do Norte que já entrou em contato e chamou sua atenção. 

Daniel Bandeira – Um dos meus filmes preferidos de todos os tempos chama-se “Sete Dias de Agonia” (filme de 1982 dirigido por Denoy de Oliveira). Ele se passa em um trecho da Transamazônica em que carros de passeio com famílias passeando e veículos que transportam gado e mercadorias encalham, ficando por ali ao longo de sete dias. Vejo nele um comentário muito interessante sobre a sociedade brasileira que não sabe para onde ir e em conflito consigo mesma.  

Isso ocorrer aqui no Norte chega para mim como uma mensagem do que acontece quando se desrespeita as leis da natureza em função de um plano de progresso. Considero este um elemento que somente esta região do Brasil é capaz de trazer. Afinal, é a cultura e os recursos naturais de um local negligenciados a ponto de provocar um anti-progresso. Fica nítido quando olho para a fumaça aqui em Manaus. 

Há também um lugar de fala muito excitante dos realizadores do Norte do Brasil que conhecem esta realidade e, através dela, se comunicam para o resto do mundo. Vocês podem trazer recados muito interessantes para o resto do país.