Antes de Katniss, Peeta e Finnick serem porta-vozes e soldados da causa rebelde como vimos há quase uma década em “Jogos Vorazes”, o jovem Coriolanus Snow (Tom Blyth) começava sua jornada para se tornar o tirânico presidente de Panem. Aqui, entretanto, o foco dele [e só conseguir se alimentar e pagar o aluguel da cobertura onde morava com a família na capital. Estamos na décima edição dos jogos e “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” surge para apresentar o episódio que mudaria a condução e a forma de enxergar o jogo de sobrevivência.   

A trama é dirigida por Francis Lawrence, que comandou a saga cinematográfica desde “Em Chamas”, evidenciando seu conhecimento deste universo e a capacidade de expandi-lo e aprofundá-lo. O cineasta bebe de referências e easter eggs para consolidar elementos que deram certo outrora e que, aqui, ficam claras as origens e motivações. A escolha mostra ser um acerto, considerando primeiramente a consistência dos subtemas presentes na trilogia de Suzanne Collins como a espetacularização, a soberba da capital e o senso de sobrevivência dos personagens centrais; com o entrelaçamento deste último item com um segundo destaque — a história de origem de um anti-herói.   

Devo dizer que, embora tendo me apaixonado por “Star Wars” a partir da trilogia prequel, Lawrence e Collins fazem com êxito aquilo que George Lucas quis realizar com o jovem Anakin Skywalker e não conseguiu. Os dois humanizam Snow ao mesmo tempo em que constroem diante da tela como ele se tornou o déspota que quis eliminar Katniss a qualquer custo. Desta forma, é possível compreender suas escolhas e notar o quanto a busca pela sobrevivência e as consequências de seus atos o moldaram. Neste ponto, se concentra o grande acerto de “A cantiga”: ela nos faz refletir sobre tudo aquilo que já foi apresentado sobre este universo.  

TRAGÉDIA INEVITÁVEL 

 

O fato de “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” mostrar a idealização dos jogos no formato que o conhecemos na edição de Peeta e Katniss se torna uma forma de cativar o público curioso, de despertar o interesse nos mais desatentos e de alimentar as expectativas dos fãs. Uma vez que filmes de origem ou prequels possuem limitações impostas por já conhecermos o final, a escolha de mudar a perspectiva dos jogos para que o enxerguemos como o espectador ativo da capital é uma jogada que prende quem acompanha a narrativa e suscita ponderações. Afinal, a construção de Lucy Gray (Rachel Zegler), Sejanus Plinth (Josh Andres Rivera) e o próprio Snow fazem paralelo com questões levantadas na trilogia original como rebelião, maneiras de enxergar o mundo e fazer o que for necessário para se manter em pé.   

Assim, “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é dividida em três partes que pontuam segmentos diferentes da vida de Snow e dos Jogos Vorazes que alicerçam o que veremos na narrativa de Katniss. No primeiro momento, vemos de imediato o que a guerra faz com as pessoas. O filme envereda por um caminho que evidencia como a capital também sofreu durante a guerra e no processo de estabilizar um tempo de paz. A estética escolhida me remete um pouco a série “O homem do castelo alto” tanto na escolha de cores — em destaque para o azul, preto, branco e vermelho — e figurinos quanto nos planos abertos para vermos a construção da cidade.    

As cores também são importantes para personificar os personagens. Os jovens arrogantes e ricos da capital trajam-se em uma mistura de anos 20 com cortes contemporâneos, ao passo que as roupas dos jovens tributos e de distritos não contém expressividade, abusando de tons neutros e estereotipados, com exceção de Lucy que esbanja cores, um aceno para sua excentricidade enquanto artista. Este contraponto é interessante porque também se faz presente na relação com Snow, ambos são consonantes e complementares. Ela se aceita, enquanto ele quer ser aceito. Os dois são órfãos e pobres, ela abraça sua condição e ele disfarça a pobreza com arrogância e genialidade. Ele gosta do que a capital lhe oferece como civilidade e ordem, já isso a apavora. Colocar os dois como dupla é um pedido de tragédia e nós, que conhecemos o Presidente Snow, sabemos que ela vem a galope.   

UM ESTUDO DE PERSONAGEM 

 

Chama atenção como o propósito do jogo se transfigura para Snow e como isso o muda seu lugar de manipulável para predador. Ele sente o poder que sua genialidade e sede de sangue podem lhe trazer e isso o motiva a se tornar um jogador, a entender os meandros utilizados para governar. Se outrora os jogos despertam o medo nos distritos de verem seus filhos serem mortos, o jovem Snow nota que para governar é necessário aceitar os seres humanos como são e vislumbrar o que é preciso para controlá-los. Neste processo, é curioso observar a transformação de uma estratégia genocida em um reality show o qual, além de alienar e levar o pão e circo aos distritos, espetaculariza a morte e a dor, banalizando-as.    

E isto leva ao ato final de “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” que se preocupa em apontar o preço a pagar pela espetacularização. O curioso é que não se utilizam os Jogos para fazer isso, preferindo imergir no romance sem futuro entre Snow e Lucy e na busca idealista de Sejanus de fazer uma revolução, resultando na virada moral final do protagonista. A escolha me faz pensar que mais do um filme de franquia, estamos lidando com um estudo de personagem. Embora a personagem de Zegler faça referência a nomenclatura do filme, a verdade é que este se debruça em desmistificar Coriolanus Snow e como sua faceta de mentor, sobrevivente e pacificador o tornaram um fascista defensor de Panem. A divisão proposta pelo roteiro consegue responder três questionamentos básicos que a jornada de um anti-herói carregam: como, porquê e quando. Afinal, todos fazem coisas ruins para sobreviver.   

  RETORNO BEM-VINDO

Para finalizar, gostaria de elogiar duas decisões assertivas da produção. A começar pela manutenção do material cinematográfico em apenas um filme, embora mercadologicamente as adaptações de fantasia sejam bastante lucrativas, a divisão de obras únicas em mais de um produto audiovisual tem mais perdas do que ganhos no sentido de conteúdo. Veja, por exemplo, o esgotamento que houve em “O Hobbit” e até mesmo em “Jogos Vorazes: a Esperança”, tornando filmes solos anêmicos e sem expressividade. Apesar da extensão, vejo como positivo a estrutura de um único filme, mesmo porque o terceiro ato não conseguiria render um filme tão forte e ainda se manter fiel ao material original, um legado das adaptações de Collins.    

Por fim, o elenco da franquia prova o apreço e o valor que a equipe de produção oferta a este produto. Não há o que falar sobre Viola Davis e Peter Dinklage, além de que seus personagens evidenciam a excentricidade e indiferença que os cidadãos da capital esbanjam no tempo de Katniss e o quanto é apreciável o termos na franquia, ao lado de nomes como Donald Sutherland, Julianne Moore e Philip Seymour Hoffman.   

“Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” nos relembra porque a trilogia original se tornou um sucesso na categoria Jovens Adultos. É um retorno a um universo que já conhecemos e para um personagem complexo e intrigante, ambos conduzem a reflexões quanto a luta por direitos, o senso de pertencimento e o que é preciso ser feito para sobreviver. Longe de mim criticar os atos de Snow, mas são justamente eles que nos atraem a ele como um imã.