Marcelo Lordello está de volta aos longas-metragens com “Paterno” exatamente uma década depois de “Eles Voltam”, obra ganhadora do Festival de Brasília em Melhor Filme, Atriz com Maria Luiza Tavares e Atriz Coadjuvante com Elayne de Moura.

Em “Paterno”, o diretor e roteirista traz a história de Sérgio (Marco Ricca), um sujeito envolvido no processo de incorporação imobiliária de uma área popular do Recife para um projeto da construtora da família. O protagonista vive entre as dúbias heranças (práticas e pessoais) passadas por seu moribundo pai e as tentativas de se manter em contato com seu filho, à beira da idade adulta.

Nesta entrevista concedida durante o Olhar de Cinema 2022, Lordello fala sobre o que o moveu para criar a história e a epópeia da ideia ao lançamento de “Paterno” nos cinemas brasileiros:

Cine Set – A questão espacial da cidade de Recife está muito presente no filme contrastando com o protagonista cada vez mais fechado, simbolizado pelos espaços limitantes do carro e do barco, por exemplo. Como foi para você pensar nestes paralelos?  

Marcelo Lordello “Paterno” é um filme de um cara vivendo a eclosão de uma obsessão, de sonhos negados e represados dentro dele. Agora, ele vê a possibilidade de, finalmente, realizá-las após a concessão feita lá no passado. O protagonista age sobre a cidade, mas, não se relaciona com ela, olhando apenas para os objetivos e propósitos dele e nada mais.  

Costumo pensar a linguagem e a decupagem do filme a partir do personagem principal, como se ele filtrasse estas escolhas. Gosto deste cinema para além da narrativa, trazendo a experiência do sensorial no protagonista. Os planos são muito cartesianos, cirúrgicos, afinal, o Sérgio é um arquiteto que trabalha com cálculos e geometria. Isso está na própria característica de ser ensimesmado, levando a planos mais fechados.  

Logo, os espaços fechados estão ligados com a não-relação com a cidade e até mesmo de uma forma de segurança presente através do carro ou do escritório. Desta forma, ele evita qualquer tipo de confronto e novas visões de pensamento possíveis na troca com o outro se saísse do casulo.   

Há também uma busca de não o filmar na frontalidade para dar uma sensação de alguém que se esconde ou de difícil acesso na parte inicial para, à medida em que Sérgio se abre para as humanidades dele, a câmera se colocar mais à frente. Gosto muito de rostos e pude me valer muito deste aspecto para fazer “Paterno”, pois, em uma dinâmica de cena, os atores me entregavam esta construção. Para além do texto, existe toda a elaboração, sentimentos, frustrações, as máscaras que o rosto revela nas expressões. Tive a sorte de contar com este grande elenco que pode me dar isso. 

Sinto que fomos muito felizes nesta conjunção de linguagem, decupagem, compreensão espacial, mise-en-scène e atuação. 

Cine Set – Recife não é a única relação distante de Sérgio; nota-se ele longe da família, especialmente, do filho e do pai. Durante “Paterno”, há uma busca do personagem para um processo de desconstrução deste histórico ainda que não seja de maneira redentora, além de um plano que parece grandioso de transformação na empresa. De que forma você pensou estas relações interpessoais no filme a partir do protagonista e o plano? 

Marcelo Lordello – Isso tudo estava presente no roteiro desde o início. É como se o filme seguisse uma linha reta entre perseverança e obsessão, mas, que se confronta com as subjetividades colocadas diante do protagonista. Na minha visão, quem está vivendo o estado mental e espiritual pelo qual Sérgio passa não deseja olhar para o lado.   

Porém, ele é pai, marido, filho, irmão, todos ambientes de relação que demandam afeto, poder e até gritos. Pela tradição e o legado, aquele local acaba sendo carregado pelo não-dito, a ponto do Sérgio ter dificuldade de expressar que está sofrendo. Mesmo com a mulher perguntando se está tudo bem, ele não consegue dizer que não está. A minha vontade de fato era que aquele cara entendesse que há afeto no mundo.  

No fim das contas, acho que ele alcança este desejo – o Sérgio ganha uma carta de renúncia e não terá problemas jurídicos com a questão do pai, tem um plano de conquista daquela terra e vai construir o projeto dele. Diferente de muitos CEOs, grandes empresários bilionários que se cegam para fazer algo porque a vontade é muito forte, mas, sem qualquer tipo de entendimento dela existir. De um lado, observo a perseverança em que se compreende o caminho, enquanto a obsessão mira apenas o fim.  

Cine Set – Diferente do que ocorreu em outros filmes, a abordagem da cidade, inclusive, das regiões mais pobres se dá a partir deste personagem rico de origem burguesa com uma família marcada por grandes conquistas. Como foi para você pensar o ambiente urbano no ponto de vista individual de uma pessoa em posição privilegiada?  

Marcelo Lordello – O cinema tem uma tradição de falar da construção das cidades, das relações de poder entre o oprimido e o opressor em um espaço urbano que não respeita a dignidade de todos de forma igual. Na minha geração, o que mais se via eram filmes na ótica do oprimido ou do ativista ou do cidadão que sofria as mudanças – acredito que isso ocorre por um certo asco à elite, afinal, o cinema brasileiro é, em sua maioria, de centro-esquerda com a arte mais ligada à visão progressista de sociedade. Logo, fica difícil se aproximar de figuras como Sérgio, pois, você odeia este cara, transpondo para a tela um retrato caricato movido pela crítica excessiva.  

Por outro lado, há toda uma literatura de autores que entenderam isso e se interessaram pelas contradições destas pessoas. A ideia de que ninguém nasce mau, mas, vai se tornando chama a minha atenção, indo buscar no passado destes sujeitos para entender a trajetória para aquele tipo de pensamento. Tenho amigos atores vindos de famílias ricas que as contestaram; toda família tem uma pessoa assim mais rebelde.  

“As Mãos Sobre a Cidade” (1963), do Francesco Rosi, trazia muito destes questionamentos com a história de um empreiteiro que ganha a eleição para vereador lidando um desastre de uma obra comandada pelo filho que provocou muitas mortes. “São Bernardo” (1972), do Leon Hirszman, é outro filme foda. Também fui em Dostoiévski ao focar em personagens que não sabem trabalhar bem os sentimentos, agindo de forma inconsequente.  

Nisso, criei uma relação afetiva com o Sérgio procurarndo o que tinha de bom nele, analisando cada decisão. Não consigo deixar de lado, afinal, sou o pai daquela história e tinha que ficar com ele por um tempo.   

Cine Set – “Paterno” foi gravado em 2017, mas, está sendo lançado somente agora. Quais foram as maiores dificuldades para produzir e estrear o filme?  

Marcelo Lordello – O meu primeiro longa, “Eles Voltam”, foi lançado em 2012 e surpreendeu muito gente, chegando a diversos festivais. Depois dele, fiquei com muita vontade de fazer uma obra protagonizada por um anti-herói. Em 2013, finalizei a primeira versão do roteiro de “Paterno” e, no ano seguinte, ganhei um edital estadual para desenvolver o roteiro ainda mais. Já em 2015, aplicamos no Fundo Nacional do antigo Ministério da Cultura no último edital de longas de Baixo Orçamento.  

Dá para fazer? Dava, mas, claro que se o dinheiro fosse maior era possível realizar um filme mais suntuoso. A grana foi liberada no fim de 2016 e o primeiro semestre de 2017 foi todo de preparação para, finalmente, gravarmos em setembro. Os valores da produção, porém, cresceram muito com o passar do tempo, logo, o dinheiro do edital de anos anteriores acaba sendo defasado em relação aos gastos atuais. Isso leva a restrições, cortando cenas e reduzindo certas coisas.  

Com alguma sobra deste dinheiro, conseguimos fazer o primeiro corte em 2018. Foi, então, que bateu uma certa agonia porque vimos que a grana não daria para completar este processo. Logo, corremos para arranjar mais recursos. Não podíamos mais captar no Brasil e acabamos conseguindo apoio de um co-produtor francês. Aplicamos no CNC (Centre national du Cinéma et de l’Image animée), uma espécie de Fundo Setorial da França, e ganhamos 50 mil euros em pós-produção, algo que eu não acredito até hoje por ser mega concorrido.  

Para usar esta verba liberada no final de 2019, entretanto, precisávamos fazer 50% do serviço lá e dividimos a correção de cor e edição de som entre o Brasil e a França. Em fevereiro de 2020, eu iria para a Europa mixar o filme, mas, veio a pandemia. Somente depois de seis meses pudemos retomar todo o processo. Para você ter uma ideia, o mix final só ficou pronto há um mês (maio de 2022). No fim das contas, estou em “Paterno” há nove anos e lidar com tudo isso ao mesmo tempo em que queria viver outras experiências de cinema…  

Hoje em dia, eu vejo o filme e penso: ‘hum, gostaria de ter usado esta cor neste trecho’, mas, isso é algo que acontece com todo mundo. Porém, entendo “Paterno” como esta obra que foi transmutando e vejo como uma obsessão minha de perseverar. Quando você lança se torna uma mistura de alegre e alívio com tristeza de ser árduo e um exorcismo pelo fato do personagem estar sendo carregado por mim durante tanto tempo. Durante a sessão, eu admito que estava meio mal, mas, ao longo da noite, fui relaxando.  

“Paterno” é um filme narrativo clássico; formalmente não tem nada de novo, mas, a relação dos personagens com a dramaturgia e a aspereza disso se transforma no risco da obra. Agora, resta esperar e ver como ele vai reverberar nas pessoas. 

Entrevista concedida durante a cobertura do Festival Olhar de Cinema 2022.

Agradecimentos: Carol Moraes e a Trombone Comunicação