Pense na cena: você compra um projetor de 16 milímetros e, junto com ele, chegam vários filmes aleatórios, inclusive, registros caseiros de uma família da África do Sul de décadas passadas.

Esta situação estranha foi o ponto de partida para a artista visual Janaína Nagata realizar uma pesquisa obsessiva para entender quem eram aquelas pessoas e o contexto social em que estavam inseridas.

O resultado foi “Filme Particular”, ´primeiro longa-metragem da carreira dela lançado no Olhar de Cinema 2022.

Nesta entrevista ao Cine Set, Janaína conta sobre o processo de realizar uma produção no formato de desktop movie e também comenta as reações recebidas no festival.

Cine Set – Fale, por favor, sobre como o material chegou até você e a sua obsessão em relação a ele.  

Janaína Nagata – Fazendo referência ao título do filme, foi uma situação bem particular (risos). Sou das Artes Visuais e nunca tinha passado pela minha cabeça gravar um longa. Em 2016, estava muito obcecada em filmes de arquivo, vendo muito cinema experimental que dialogava com as artes visuais.   

Nesta época, uma igreja perto da minha casa em São Paulo estava doando um projetor de 16 milímetros. Peguei o equipamento, porém, faltava o carretel. Encontrei na internet e o anúncio informava que, junto com a peça, vinha também um filme particular. Quando tudo chegou, meu namorado que curte cinema montou o equipamento e decidiu fazer a projeção de um dos filmes que vieram com a compra. Ao terminar, ficamos incomodados, pois, eram imagens muito incômodas. Passamos a noite fazendo mil especulações – “será que era um empresário? Ou uma família viajando ou um funcionário do governo? Quem era essa pessoa? E aquela família?”.   

Fiz uma telecinagem (método para a conversão de filmes em película para vídeo) caseira do material colocando a projeção para filmá-la e já iniciei as pesquisas. Olhava para uma placa e colocava no Google de onde ela seria para situar o filme. Depois, consegui realizar a telecinagem profissional, permitindo ver frame a frame.   

Na minha visão, não era cabível intervir na película por ser um documento histórico, logo, a minha intervenção poderia ser um ato de agressão a este registro já que iria modificá-la em um gesto muito incisivo. Considerava sim em revisitar as imagens, mas, sem colocar minha marca de forma equivocada naquele material.   

Neste processo, eu dividia a tela para analisar o que estava no quadro e fazer a pesquisa. Percebi, então, que as duas coisas em paralelo era interessante e veio a ideia do desktop movie, nascendo o projeto do “Filme Particular”.  

Apesar de ser uma produção curta de 1h30, passei noites e noites nele, indo no Google Street View para refazer os percursos. Em paralelo, pesquisava sobre a história da África do Sul para entender o contexto. Todas estas informações foram coletadas e usadas no roteiro. Uma obsessão mesmo de uma busca sem parar.  

Cine Set – Chama a atenção como as imagens, o filme em si e a perspectiva vão se transformando no decorrer da projeção. Afinal, inicialmente, estamos diante de um filme familiar assim como de uma pesquisa aparentemente cotidiana com várias abas abertas no computador. No decorrer de “Filme Particular”, nota-se que nem aquele filme analógico seja tão caseiro assim como a sua pesquisa digital ganha contornos muito maiores, pensada justamente para a narrativa do longa. Como você trabalhou estes paralelos entre as duas imagens? 

Janaína Nagata – No momento em que gravava as telas da pesquisa, fui percebendo como a tela dividida muda o dinamismo presente no cinema tradicional em que o cineasta direciona o teu olhar. Afinal, tem elementos por todos os espaços e a ideia era ter a atenção mais dispersiva mesmo, sendo o mouse como uma espécie de guia, mas, sem aquela rigidez toda, o que permite você a olhar para outros locais. 

Por isso, a opção pelo plano-sequência. Sei que é uma questão polêmica por você guiar muito a narrativa, mas, ela me permitia organizar melhor esta dispersão. A ideia era conjugar a dispersão do olhar com os signos que vão aparecendo e organizar um fluxo no meio disso. 

Cine Set – Aproveitando o assunto, como foi este processo de montagem em parceria com a Clara Bastos? 

Janaína Nagata – A preocupação primeira foi ter algum arco narrativo. Isso era muito difícil, pois, o material original apresentava muitas camadas, mas, não possuía uma narrativa clássica; era apenas uma reunião de momentos familiares. De qualquer forma, a ideia era trabalhar em um ritmo de crescimento.  

Logo, tínhamos que localizar aquela história geograficamente e, depois, íamos destrinchando o contexto político. A proposta era trazer a viagem de família ocorrendo no apartheid, algo meio estranho, até chegar no que considero os dois ápices: a revelação de quem é o Khotso Sethuntsa e a morte do primeiro-ministro.  

Os momentos em que fechamos a tela da pesquisa colocando o filme original inteiro era usado para conseguir organizar o plano-sequência. Afinal, não iríamos conseguir realizar todo o filme em uma única sequência no formato de desktop movie. Isso tanto resolveu a situação do ponto de vista técnico como se tornou um recurso conceitual, pois, permite você ver a pesquisa e, depois, voltar ao filme original.  

Já nos momentos de pesquisa, era difícil encontrar o ritmo sobre que horas você var clicar ou a velocidade para mover o mouse. Considero “Filme Particular” exigente, afinal, o espectador ficará olhando para uma tela de computador por 1h10, mas, tentamos suavizar isso para aproximar o público, fazendo-o se situar com esta situação pouco a pouco sem ser algo abrupto.   

Cine Set – Os primeiros 19 minutos de “Filme Particular” trazem as imagens do filme original na íntegra. De onde surgiu esta ideia e a razão de você ter feito desta maneira?  

Janaína Nagata – Esta ideia estava presente desde o começo, porém, o projeto tomou rumos diferentes. A proposta inicial era fazer um curta-metragem e, quando passei para a Clara, pedi para ela reduzir o material para 10 minutos, porém, não gostei do resultado.   

No original, já há cortes visíveis na própria película física por serem feitos com durex e observo como esta edição já era intencional, sempre dizendo algo. Isso fica óbvio quando ao registrar um grupo de pessoas negras vindo em direção à câmera, há um corte súbito para um registro de ovelhas. Considero esta parte muito forte e sinto muito incômodo ao vê-la.  

Meu intuito era destrinchar o olhar de quem estava por trás da câmera, daquela família branca viajando por vários locais da África do Sul. Logo, se eu editasse o filme antes, eu não iria conseguir fazer isso de forma justa. Foi o momento em que passamos de curta para longa. Eu sabia que haveria o ônus de cansar o espectador, mas, foi a escolha. 

Cine Set – De todos os filmes do festival, nota-se que este, parafraseando o título, é realmente mais particular. Deixa uma sensação de ser algo mais diferente, distante do que tradicionalmente se convenciona de cinema, além de ser uma produção brasileira falando de um tema de um outro país, outra realidade juntando analógico com digital. Diante de tudo isso, como tem sido a recepção a “Filme Particular”?  

Janaína Nagata – Percebi que teve gente que embarcou demais na proposta e outras que não aguentaram, mas, eu já esperava isso. Há ainda o aspecto de eu ser uma pessoa de ascendência japonesa fazendo uma história sobre o apartheid na África do Sul. Cheguei a mostrar “Filme Particular” para amigos meus das Artes Visuais que militam pelo movimento negro e me deram uma recepção, porém, era um recorte específico e não tinha pessoas ligadas ao cinema.   

A recepção aqui em Curitiba ajudou a repensar certos momentos como, por exemplo, a cena da trança, a qual já havia sido discutida em um laboratório de montagem. Sabíamos que estávamos correndo o risco de inseri-la por trabalhar no limite da reencenação de denunciar ou novamente reproduzir uma cena de violência. Porém, resolvemos manter na íntegra e houve esta recepção mais complicada com pessoas até saindo da sala no momento. Entendo a reação e acho que preciso ouvir mais coisas.  

Ainda assim, as discussões trazidas como o olhar da internet, do mediador e da pesquisa também foram bem válidas e positivas. 

Entrevista publicado na cobertura do Festival Olhar de Cinema 2022.