Indicado ao Oscar por “Traídos Pelo Desejo” e com grandes filmes na carreira como “Entrevista com o Vampiro” e “V de Vingança”, Stephen Rea retorna aos cinemas brasileiros com “Segredos do Putumayo”. O documentário dirigido pelo amazonense Aurélio Michiles traz como protagonista um herói nacional da Irlanda, país natal do ator.

Roger Casement foi Cônsul Britânico no Brasil e realizou uma fundamental investigação sobre os assassinatos de 30 mil índios mantidos em regime de escravidão para coletar toneladas de borracha. A divulgação destes crimes humanitários na Amazônia e no Congo, onde também atuou, levou a opinião pública do Velho Continente a conhecer práticas desumanas utilizadas para a obtenção de riqueza.

Não demorou muito para Casement associar o drama destes povos com a luta dos irlandeses pela liberdade perante o Reino Unido. O envolvimento na independência do país terminou com a morte dele, transformando-o em um herói revolucionário, respeitado até hoje, inclusive por Rea, sempre engajado politicamente na vida pública da Irlanda.

Nesta entrevista, o ator fala sobre estes paralelos entre os povos afetados pelo importante trabalho de Casement assim como foi construir uma voz sem qualquer tipo de registro para se basear.

Cine Set – Apesar de não ser tão conhecido no Brasil, o Roger Casement possui muito prestígio na Irlanda, sendo considerado um herói. Como você conheceu a história dele?

Stephen Rea – Roger Casement realmente é muito conhecido na Irlanda e considerado um mártir após morrer enforcado a mando do governo britânico por conta da contribuição dele para a independência do país. Foi enterrado em uma vala comum no pátio da prisão na Inglaterra. Somente anos mais tarde, os restos mortais retornaram à Irlanda, onde recebeu o tratamento adequado.

Ele foi uma vítima terrível do que aprendera junto aos indígenas de maneira vívida no Putumayo – a necessidade da liberdade. Quando ele estava lá, pensou: “isso é como a Irlanda”. Casement se tornou um símbolo de revolução; uma figura nobre para nós.

Cine Set – Quais semelhanças você considera existir entre o povo irlandês, os indígenas da Amazônia e a população do Congo a partir da sua experiência?

Stephen Rea – Não sei se consigo elucidar isso, mas, sei que os ingleses consideravam os irlandeses selvagens, algo que nunca foram. Os irlandeses eram sim altamente civilizados e acredito que isso se repita nos casos do Congo e dos indígenas do Putumayo.

Acontece que estas populações possuem algo que o invasor deseja. A Irlanda, por exemplo, tinha a maior área florestal de toda a Europa antes da conquista da Rainha Elizabeth. Hoje em dia, temos a menor taxa no continente. Putumayo também foi sobre roubo.

Algumas imagens deste filme são absolutamente chocantes: há meninos que tiveram seus braços arrancados. O que você precisa tanto para decepar um garoto? São pessoas que veem tudo como produto para aquisição – óleo, florestas. É o que imperialismo faz.

Diante disso, os povos indígenas tiveram que se unir, se identificar e encontrar, de certa forma, um novo caminho.

Cine Set – E eles encontram um homem bondoso em Casement nesta trajetória.

Stephen Rea – Sim, a sorte é que ele tinha poder dentro do Governo britânico, logo, podia agir e ter livre movimento na estrutura burocrática. Felizmente, o Casement obteve esta visão mais humanitária em Putumayo e, tempos depois, na Irlanda.

Cine Set – No filme, quando você introduz o Roger Casement, ele está em Belém durante a Belle Époque, período de grande riqueza para a região. E lá se fala sobre ser um estrangeiro em uma outra terra. A partir disso, gostaria que falasse sobre o que foi mais desafiador em fazer este personagem, especialmente, nesta visão mais pessoal de uma figura pública.

Stephen Rea – Tenho uma longa admiração pelo Casement. Na Irlanda, há um local chamado Murlough Bay com um monumento para ele – onde o Roger disse que gostaria de ser enterrado. Fui lá bem jovem. Infelizmente, em tempos recentes, uma pessoa foi lá e urinou no local. Fiquei enojado com aquilo e percebi como era preciso resgatar a história dele.  

Não há nenhum tipo de gravação da voz do Casement, mas, soube que a família dele era do norte da Irlanda – igual a minha – e, logo, tentei criar uma sonoridade que refletisse isso. Paralelo a isso, também busquei construir uma espécie de voz mental, diferente daquela externada para as outras pessoas. Era uma criação da mente dele.

Cine Set – Humanizar o mito.

Stephen Rea – Sim, acredito que sim.

Cine Set – Há as imagens chocantes no filme, como você já citou, mas, também temos a poesia da narrativa. Qual foi a sua reação ao ver “Segredos do Putumayo” finalizado e qual a mensagem que você gosta que o filme represente para o público?

Stephen Rea – Acima de tudo, o Aurélio é um grande diretor. O trabalho dele é marcado por grandes ideias, paixões e muito engajamento. Estar com um cineasta assim é animador e isso nem sempre acontece. E fazer um filme como “Segredos do Putumayo” é muito representativo tanto para os descendentes daqueles que morreram como para que as pessoas entendam o tamanho do horror daquela situação há 110 anos.

Fazer cinema, estar neste ofício em que estamos serve para mostrar do que somos capazes como seres humanos, da destruição de outras vidas que causamos. Isso é o principal. E urgente. Está acontecendo em todos os lugares. Os povos indígenas seguem enfrentando problemas parecidos. Precisamos parar logo com isso.