Um dos mais importantes cineastas da Amazônia, Aurélio Michiles se tornou um grande especialista em Roger Casement – o poeta, diplomata, defensor dos direitos humanos que se tornou um herói na sua Irlanda natal e percorreu territórios na floresta amazônica para investigar operações da coroa britânica. Teria sido o estrangeiro um anti-herói? Ou um defensor dos povos tradicionais, evitando assim o extermínio deles na região?  

Em entrevista exclusiva para o Cine Set, Michiles conta que já tinha o embrião de “Segredos do Putumayo” em 1997, ano em que apresentou ao mundo “O Cineasta da Selva”. Quando se debruçou sobre a obra do pioneiro Silvino Santos descobriu uma expedição na qual ele participou para realizar um documentário acerca da exploração da borracha em Putumayo.  

De 1998 a 2010, o projeto de adaptar o livro “Diário da Amazônia” (ou “The Blue Book” no original) foi sendo gestado, até que o cineasta reencontrou o pesquisador Angus Mitchell e juntos desenvolveram a narrativa centrada no diário (de bordo) de Casement.   

As sacadas visuais, a montagem intuitiva além de explicativa e referencial do período histórico destacado, ganha algo maior do que um voice over; isso graças à personificação que o grande ator Stephen Rea faz de Casement.  

Viagem à Irlanda 

Aurélio Michiles já dirigiu filmes sobre Silvino Santos e Cosme Alves Neto.

Michiles conta que pensou a princípio em representar fisicamente Casement em seu filme-libelo, como uma borboleta que saiu do casulo onde estava escondida, rumo à liberdade – o que conecta perfeitamente com o fato de que Casement foi considerado traidor da coroa britânica no final da vida, sofrendo uma campanha difamatória e terminando preso na Torre de Londres, de onde saiu direto na forca.  

Indo na Irlanda, Michiles soube o quando Casement também era escondido – sofreu uma campanha de difamação. Na tentativa de entender o pensamento do revolucionário e o estado de destrutiva permanência das coisas no colonialismo, o cineasta fez tudo por amor ao cinema e ao território onde nasceu, dirigindo um documentário – que tem a participação de almas afins como o escritor e amigo Milton Hatoum – que contém a força poética e política pela qual o mundo contemporâneo convulsionado clama.  

Confira a entrevista: 

Cine Set – Realizar um filme-diário que exalta a figura humanitária de Casement também é uma maneira de clamar por mais responsabilidade dos governos em relação a Amazônia?   

Aurélio Michiles – Ao fazermos uma escolha temática para a produção de um documentário sobre a Amazônia, não se pode esquivar das ameaças que atingem essa região, especialmente, ao meio ambiente e às populações originárias que aí vivem.   

Os governos sempre refletem as pressões dos poderosos interesses que envolvem a ocupação e exploração dos recursos naturais, mas nenhum deles se mostrou tão subserviente e nefasto como o atual governo brasileiro, um verdadeiro inimigo do meio ambiente e dos povos originários. “Segredos do Putumayo” só reafirma a permanência dessa política nefasta que tem marcado a História da Amazônia.

Cine Set – Como se constituiu a ideia de ficcionalizar Casement para trabalhar esse dispositivo do narrador personagem? 

Aurélio Michiles – Sempre gostei dessa mistura de ficção e documentário, penso que isso é a própria vida. A nossa existência é marcada por acontecimentos fictícios, produzidos pelo nosso imaginário, como pela realidade nua e crua. Um filme não poderia fugir dessa dinâmica transformadora.   

Em “Segredos do Putumayo”, a história contada é baseada em um diário escrito por um diplomata há mais de um século. Editado, este material tornou-se um livro com mais de 400 páginas, relatando fatos testemunhados ao longo de cinco meses.  

O desafio foi encontrar uma linguagem narrativa que não tornasse essa interpretação cênica do diário impresso em uma experiência audiovisual. Nisso, entra o narrador, no caso, o Stephen Rea: ele faz toda a diferença, dando nuances que nos faz compartilhar da longa jornada rio e selva amazônica adentro do cônsul-geral Roger Casement.   

Cine Set – Qual o legado que espera que este filme alcance?  

Aurélio Michiles – A Colômbia, onde aconteceu o massacre do Putumayo, é o país que mais persegue ativistas dos direitos humanos. As lutas das comunidades amazônicas por direitos à autodeterminação e justiça básica perduram diante das ondas selvagens do desenvolvimento econômico e de uma intolerância cultural e racial crescente.   

Eu espero que o filme seja visto, discutido, exibido. Recebi ontem a notícia de que houve uma exibição em La Chorrera através do link que enviamos e que ele será incluído como material nas escolas.