Co-produção Brasil-França, “Curupira e a Máquina do Destino” trilha um caminho importante em festivais nacionais e internacionais. Desde a estreia nacional na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2021, a obra da diretora Janaína Wagner por eventos como Olhar de Cinema, Cabíria Festival, Festival do Rio, Festival Ecrã e foi exibido no Glasgow Film Festival, dentro de um programa sobre “Ecologia e fins de mundo”, na esteira da COP 26, em fevereiro deste ano.

“Curupira e a Máquina do Destino” documenta o encontro no tempo presente entre uma curupira e o fantasma encarnado de Iracema, personagem do filme “Iracema – uma transa amazônica”. Abertos feito feridas durante a Ditadura cívico-militar que enredou o Brasil nos brados da ordem e do progresso, os vergalhões de asfalto que varam o país foram construídos, destruídos e se afogam agora em um processo de reconstrução. Ruínas mornas de um futuro viciado. Apaixonada, Iracema fantasma parte nas encruzilhadas das estradas retilíneas do Amazonas para encontrar Curupira e vingar o futuro.

Em uma rápida passagem por Manaus, o Cine Set conversou com Janaína Wagner sobre a realização do filme, as inspirações para o curta e o próximo trabalho que abordará fantasmas na região de Barcelos, uma das maiores cidades do interior do Amazonas.

Cine Set – Quando começou o seu interesse no cinema e o que te motiva para seguir na área?  

Janaína Wagner – Desde a época da faculdade de jornalismo, eu trabalho com vídeo apropriados do YouTube e de outras plataformas, fazendo uma nova decupagem de algo já existente. Trabalhava com imagens de catástrofes, desastres naturais feitas por pessoas comuns que subiam estes materiais nas plataformas. Com o passar do tempo, a partir de 2016, consegui mais recursos econômicos para fazer as minhas próprias imagens.   

Cine Set – “Curupira e a Máquina do Destino” faz parte do seu trabalho de doutorado. Gostaria de saber quando e como surgiu o seu desejo de trabalhar neste ser amazônico.   

Janaína Wagner Antes de entrar nesta pesquisa sobre o curupira, eu tinha trabalhado sobre a figura do lobisomem. Estas criaturas que ficam na linha do humano e não-humano fazem parte do meu trabalho desde sempre, pensando a forma como elas estruturam a nossa sociedade. As relações dos limites que os humanos colocam para o mundo e vice-versa são a base deste estudo.   

Por conta disso, eu olhava muito para o antropoceno e capitaloceno até chegar na figura da curupira, pensando que poderia ser uma chave de análise para falar de assuntos atuais como o extrativismo através de uma criatura que pertence tanto às narrativas originárias quanto às tradições orais e também da imaginação. A curupira veio neste processo por ser uma força reguladora do capitalismo, uma protetora da floresta impedindo você de tirar mais do que precisa, uma verdadeira força de equilíbrio.   

Cine Set – Como foi a imersão para realizar o filme e todo o seu processo de pesquisa? O curta já estava em mente desde o início ou surgiu no decorrer do caminho?   

Janaína Wagner – Eu sabia que seria um filme, pois, a residência na França, onde faço doutorado, que financiou e realizou a produção. Eu tinha a opção de fazer uma instalação ou um filme. O curta foi se construindo ao longo de muito tempo, inclusive, pela pandemia que acabou acrescentando um ano de estudos sobre o tema.   

Cine Set – E como foi a escolha da região para fazer o curta?   

Janaína Wagner – Cheguei a vir para a Manaus, São Gabriel da Cachoeira e Careiro Castanho em 2019 quando já estava com a pesquisa na cabeça. O Thiago Cavalli, fundador da Casa do Rio, uma ONG que construiu uma escola na comunidade de Igapó Açú, na BR-319, me ajudou a chegar no local que fica na ponta oposta ao projeto dele. De lá até Manaus são quatro horas de viagem.   

Quando estava no Igapó, vi aquele cenário da estrada que parecia saído dos filmes do (Andrei) Tarkovski; não tinha nada pela frente, terra arrasada. Alguém, então, começou a dizer que aquele cenário apocalíptico era, na verdade, o Distrito de Realidade. Foi lá, então, que eu soube que o distrito realmente existia e era a última parada até Porto Velho. Queria filmar aquela realidade.   

Cine Set – No curta, você trabalha com imagens de arquivo, técnicas de colagem. Quais foram as influências que você teve para fazer “Curupira e a Máquina do Destino” e como torná-lo algo com a sua marca?   

Janaína Wagner Muitos dos meus trabalhos possuem textos e imagens que são apropriações de outros trabalhos. Aqui, foi um esforço fenomenal para tirar todos os textos e deixá-lo mais silencioso, focando e confiando mais na imagem pela primeira vez.    

As influências vão desde a poesia com Carlos Drummond de Andrade, presente no fim do curta, os áudios da ditadura cívico-militar, Barões da Pisadinha – na verdade, um amigo músico refez a música para ficar bem parecido -, Luzirene do Cavaquinho cantando “Máquinas Humanas”, que também aparece em “Iracema” no longa do Jorge Bodanzky, mas, em uma versão brega melancólica romântica, imagens do Arquivo Nacional da construção da estrada, a Baleia do “Vidas Secas”, do Nelson Pereira dos Santos, entre outras.   

Cine Set – Estas referências acontecem de que forma?   

Janaína Wagner – De forma natural, pois, é o jeito que trabalho. Vou recolhendo minhas ideias como se fossem pequenos pedaços, anotando em cadernos até tudo se encaixar.  

Por exemplo: eu sabia que queria fazer um filme sobre a curupira sendo ela uma chave de análise do Brasil de agora e como esta figura do anjo da história, do Walter Benjamin. Também queria que uma garota a encontrasse, mas, demorou muito para que ela virasse Iracema. Daí, só era necessário conseguir achar uma maneira de trazê-la para esta história.   

Cine Set – Durante a sua apresentação do filme na Faculdade de Artes da Ufam, você fez muito referências a fantasmas e me pareceu que você tinha um olhar mais ampliado para a palavra em si. Qual a sua relação com esta ideia de fantasma?   

Janaína Wagner – Bem, estou começando um filme novo chamado “A Mala da Noite” e que fala justamente sobre fantasmas. Por isso, os fantasmas ficam rondando na minha cabeça (risos).   

Quando fui morar na França, eu não sabia o idioma local – aprendi lá. Certa vez tive que traduzir esta palavra e escrevi a palavra que veio mais semelhante. Foi, então, que alguém veio me explicar que este significado de ‘fantasma” lá não é semelhante ao dos EUA como ‘ghost’ – a designação correta seria ‘fantôme’.    

O fantasma em francês seria uma fantasia, como se fosse um véu que precisássemos atravessar na psicanálise do (Jacques) Lacan. Logo, quando encontramos o nosso fantasma, é como se encontrássemos uma cura ou libertação.    

Então, o fantasma que busco é o que está encarnado na Iracema e da fantasia no sentido quase de desejo, erotismo. Como história e passado, a gente precisa atravessar este fantasma para chegar ao futuro.   

Cine Set – Fale sobre os seus projetos futuros, por favor.   

Janaína Wagner – Meu novo filme será rodado em Barcelos falando sobre estes fantasmas que ficam entre a floresta e a cidade, os encantados, os bichos e também, claro, os muitos fantasmas das mulheres dali, afinal, a cidade possui um alto índice histórico de feminicídio e violência contra a mulher.    

Será um documentário em longa-metragem para filmar somente no fim do ano que vem. Agora, estou indo para começar esta pesquisa. O filme será muito expositivo construído a partir de oficinas de vídeo e teatro com crianças da escola, sendo o roteiro elaborado por elas para que possamos reencená-las. É um projeto longo, ainda estou em fase de captação.   

Paralelo a isso, tenho o meu trabalho no dia a dia no ateliê, onde vou construindo objetos, desenhos, pinturas em que a ideia do filme toma corpo. É um lugar que me ajuda a colocar as ideias em imagens.    

Cine Set – Aproveitando que você fará mais um filme no interior do Amazonas, como tem sido esta sua relação com a região amazônica e as imagens que ela te traz?   

Janaína Wagner – Este lugar onde a natureza e a construção precária estão em um atrito grande é algo muito específico daqui. Claro que existe em outros lugares, mas, está evidente e sensível demais na Amazônia. “Curupira” foi uma porta de entrada e, com “A Mala da Noite” quero entrar, passar este turbilhão e, talvez, encerrar o que eu possa a fazer aqui na região.