Há muitos lugares onde é possível se perder, mas talvez o mais profundo e remoto deles seja dentro de si mesmo. “Sibéria”, novo filme de Abel Ferrara que estreou na Berlinale e foi exibido no Festival de Londres deste ano, é uma viagem lisérgica que pede muito do espectador, mas que recompensa em igual medida.

Destinado ao circuito de arte (e aparentemente orgulhoso disso), o longa mantém o modo contemplativo dos últimos filmes de seu realizador e apresenta a simbiose perfeita entre este e seu ator principal, Willlem Dafoe. 

Em sua sexta colaboração com Ferrara, Dafoe interpreta Clint, um americano vivendo na região que dá nome à produção. Sem falar uma palavra de russo, ele cuida de um bar que serve à população e sofre alucinações que apontam para um passado horrível que o marcou e o fez fugir de tudo. Um dia, ele decide investigar seus medos e parte para o meio da imensidão gelada para um duro confronto consigo mesmo. 

A primeira metade de “Sibéria” é estilizada como um thriller – algo que se reflete tanto nas imagens escuras e na paleta de cores esverdeada (cortesia do diretor de fotografia Stefano Falivene) quanto na música sombria do compositor Joe Delia. Algumas cenas apostam até mesmo em sustos, provando que o passado de alguém pode ser tão assustador quanto qualquer stalker. 

Aos 45 minutos, no entanto, o longa muda completamente de marcha e o que se segue são cenas levemente conectadas que reimaginam a trama de “A Felicidade Não Se Compra” como uma viagem de culpa e vergonha. 

DAFOE FANTÁSTICO 

Narrativamente, Ferrara opta por manter o espectador às escuras com relação aos detalhes da trama, somente dando informações soltas e imprecisas a respeito dos acontecimentos da vida de Clint que o levaram a cuidar de um bar na Sibéria. 

O roteiro co-escrito por Ferrara e Christ Zois prefere investir em associações de imagens para traduzir a mente de seu protagonista, evocando um clima de sessão de terapia (Zois, que já co-escreveu outros quatro filmes do diretor, já foi psiquiatra) e cortejando abertamente a possibilidade da viagem de Clint não ser física – apenas psicológica. 

Dafoe está fantástico no papel que parece que nasceu para interpretar. Sua face cansada transita entre alegria, fúria e medo em intervalos curtíssimos de tempo. Mesmo em cenas delirantes e com diálogos nada naturais, ele investe o personagem de uma carga emocional que cativa o público. 

Removido de sua aura desafiadora, “Sibéria” quer contar a história de um homem egoísta tentando mudar e fazer as pazes consigo mesmo. Essa essência familiar poderia ter gerado um filme comum, mas Ferrara mergulha no abismo do ser humano e sai com uma obra acima da média. 

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