Com “Julieta” (2016), o espanhol Pedro Almodóvar dá continuidade na que talvez seja a característica mais marcante de seu cinema: traduzir em imagens os aspectos emocionais dos dramas vividos por seus personagens. Nos anos 1980, isso significava encher a paleta do diretor de cores berrantes e pessoas passionais como em “A Lei do Desejo” (1987) e “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988).

Já nos anos 1990-2000, filmes como “Carne Trêmula” (1997), “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999) e “Fale com Ela” (2002) trouxeram mais equilíbrio entre o universo externo e interno desses personagens. Na medida em que o século XXI avança, Almodóvar parece tentar emular, dentro de seu estilo próprio, algo de Alfred Hitchcock, em suspenses como “Abraços Partidos” (2009), “A Pele Que Habito” (2011) e agora em “Julieta”.

A mescla de drama e suspense serve bem a esse propósito. Com ela, o diretor pode trabalhar com elementos que lhe são caros, como a protagonista feminina, os conflitos de amor e, mais recentemente, as idas e vindas no tempo e espaço diegéticos. É exatamente isso que vemos com a personagem-título, uma mulher madura (Emma Suárez) que desiste, abruptamente, de se mudar da Espanha para Portugal com o namorado, Lorenzo (Darío Grandinetti), após receber notícias da filha, Antía (Blanca Parés/Priscilla Delgado). De início, não sabemos exatamente os motivos que levaram ao distanciamento entre as duas, cabendo a uma carta escrita por Julieta a explicação para tal.

Memória fragmentada

O flashback construído por Julieta na carta dela serve a três propósitos interessantes dentro da proposta do filme: em primeiro lugar, ele direciona a narrativa enquanto memória fragmentada, intensificando elementos como a visão da jovem protagonista (nesse momento, interpretada por Adriana Ugarte) de um cervo correndo na neve durante uma viagem de trem (prenúncio de morte e paixão) em detrimento do que Antía, também central no mistério do filme, vivenciou.

Em segundo lugar, a ação de Julieta ao escrever (e nos narrar) a carta é algo que o espectador consome de forma linear, acompanhando palavra após palavra. Isso ajuda diretamente a construção da tensão nas pinceladas de suspense do filme, intensificadas em vários momentos pela trilha sonora instrumental de Alberto Iglesias. Ainda que possamos identificar o filme muito mais como um drama familiar, é impossível não perceber que a direção de Almodóvar em “Julieta” mescla-se com o gênero que coroou a carreira de Hitchcock, já que o tempo todo nos perguntamos e aguardamos pela resposta do que aconteceu a Antía e como ela e a mãe chegaram ao ponto de perderem a conexão entre si.

O terceiro ponto que podemos observar a partir de como a escrita da carta de Julieta ao nos contar a história dela é que podemos inferir o real tema do filme, para além dos conflitos familiares. Ao terceiro ato, quando o filme aponta para a resolução do mistério, a surpresa revelada nos fala sobre (sem spoilers!) como nossas vivências são como a carta de Julieta: igualmente fragmentadas, vistas a partir de um único ponto de vista e coloridas por nossas emoções, sendo impossível uma total comunicação e compreensão do que se passa no coração do outro, o que, ainda assim, não nos impede de amar.

Cena de Julieta, de Pedro Almodóvar

Não só a relação de Julieta com Antía, mas também com o marido Xoan (Daniel Grao), a amiga Ava (Inma Cuesta) e a empregada Marian (Rossy de Palma) mostram isso, o que só aponta também para como o título original do livro no qual o filme se baseia, “Silêncio”, é adequado. Todos guardam segredos que orbitam a personagem-título e ajudam a colorir o silêncio sempre presente da ausência da filha. Para Almodóvar, no entanto, as tonalidades diferem de seu trabalho de décadas atrás, sendo bem mais sóbrias em vários momentos com o trabalho do diretor de fotografia Jean-Claude Larrieu. Ainda assim, o destaque maior do filme em termos visuais é quando Larrieu entra em sintonia com o figurino de Sonia Grande e a direção de arte de Carlos Bodelón e Federico García Cambero no início do flashback, quando vemos a jovem Julieta com seus cabelos loiríssimos e sobrancelhas negras, roupas de cortes ousados e cores mais vivas, bem ao gosto do universo que Almodóvar nos trouxe no início da carreira.

Essa mudança visual acompanha, curiosamente, o caráter de anticlímax que o diretor impõe a momentos-chave do filme. Isso pode causar estranhamento a fãs que esperam ver filmes tão intensos como os primeiros longas de sucesso do diretor, apesar dessa escolha não se constituir num erro por si só, ao contrário de alguns pequenos furos de roteiro. Verdade seja dita, eles não chegam a prejudicar o andamento da trama, mas mostram certa pressa ao tentar desenvolver tudo que a proposta do filme carrega. Voltando à divisão proposta no início deste texto para a filmografia do diretor, podemos colocar “Julieta” como um filme menor perante, por exemplo, “A Pele Que Habito”, mas com certeza muito mais interessante que o também recente “Os Amantes Passageiros” (2013).

Observando-se a obra em si, “Julieta” é um filme mais que correto, cujo final de pontas soltas é outro elemento um tanto estranho e que, no entanto, casa com sua proposta, sendo provável que agrade ao espectador médio. Por outro lado, observando o filme enquanto integrante de uma das filmografias mais autorais e marcantes do cinema mundial, “Julieta” é capaz apenas de causar empatia, não podendo ser colocado num “Top 5” de melhores filmes de Pedro Almodóvar, por exemplo. Dada a qualidade dos filmes do diretor, isso não é nada ruim.

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