Dando continuidade à entrevista exclusiva de Márcio Souza ao Cine Set (confira a parte 1 aqui), o escritor comenta sobre seu trabalho no cinema como roteirista e diretor, além de abordar sua visão sobre os modos de produção do cinema atual, a quantas anda o cinema brasileiro e local e que filmes tem chamado sua atenção.

Cine Set: Por que você decidiu passar desse papel de cinéfilo para realizador?

Márcio Souza: A gente queria fazer cinema mesmo, né? Mas era muito caro. Ainda nos anos 1960, eu fui para São Paulo e consegui emprego numa produtora, a Servicine. Fui roteirista lá. Era um trabalho ótimo: eu não tinha ponto, não tinha que ir lá, ia na segunda-feira e eles me davam as tarefas que eu tinha que fazer. Na segunda seguinte, eu entregava tudo, eles me pagavam direitinho e muito bem.

CS: E os seus roteiros eram para cinema mesmo?

Márcio Souza: Sim, só para cinema, para filmes caipiras, sertanejos. Aliás, caipira mesmo, porque sertanejo hoje é a degeneração do caipira [risos]. Na época, não tinha ninguém cantando com voz de falsete. Trabalhei na Servicine, que era do Alfredo Palácios e Antonio Paulo Galante, e quando era férias, trabalhava como assistente de produção, assistente de direção, para aprender. E na época, a televisão era muito insipiente. No fim dos anos 1960, esses documentários que hoje vemos na televisão eram na época passados para as crianças junto com desenhos animados infantis e outros filmes para o público infantil. Como eu dominava francês e espanhol, a Servicine me contratava e eu fazia tudo, como um pacote: eu remontava esses filmes, traduzia a narração, contratava narrador e estúdio, gravava narração, fazia a montagem de som, mixava e entregava a cópia pronta para exibição. Dava para ganhar um bom dinheiro e eu fiquei craque na moviola.

CS: “A Selva” sempre é citado como seu principal filme. Como nasceu a ideia de dirigi-lo?

MS: O filme “A Selva” foi efeito com uma equipe com a qual já tinha trabalhado antes na Servicine. Aliás, foi a Servicine que produziu esse meu filme, junto com a LM Produções Cinematográficas, que era do Luiz de Miranda Corrêa. O filme nasceu depois desse estágio prático. No caso do “A Selva”, eu não fiz a montagem, contratei o Inácio Araújo, que hoje é o crítico da Folha de São Paulo. Foi a primeira vez que o Inácio viajou de avião, para o Rio de Janeiro, para fazer a dublagem e a mixagem nos estúdios da Atlântida, que ficava no Centro do Rio de Janeiro. Cada vez que pousava um avião no Aeroporto Santos Dummont, tinha que parar a gravação porque o ruído vazava para dentro do estúdio [risos]. Esse era o cinema brasileiro da época.

CS: Em entrevistas anteriores, você faz críticas sobre como o cinema brasileiro se utiliza das verbas públicas. Você ainda mantém essa opinião?

MS: Mantenho. Creio que isso destruiu muito a cultura. A Embrafilme era feudo do Rio de Janeiro, só eles pegavam o dinheiro. E também, os produtores lá estavam pouco ligando pra isso. Eles produziam filmes muito baratos, em trinta dias, e os filmes nunca entravam em estreia no Cine Ipiranga, na Avenida Ipiranga, no Centro, onde as grandes produções estreavam, porque antes de chegar aos cinemas das capitais, eles faziam um circuito em cinemas do interior. Tinha os distribuidores ambulantes, ou seja, o cara tinha uma Kombi velha e as latas de filme iam dentro da Kombi. Ele parava numa cidade, ficava um dia lá, o cinema passava o filme e ele ficava do lado da bilheteria, recolhendo a parte dele e já ia para outra cidade, com a qual já tinha fechado o acordo para exibição por telefone. Então na bilheteria, todo o investimento do filme já retornava nos três primeiros meses, senão a empresa ia à falência. Eu era roteirista, e hoje a pessoa nessa função ganha uma porcentagem do que o filme arrecada, uns 10%, mas eu ganhava por mês lá. Se for fazer as contas, o que eu ganhava era mais que esses 10%, creio que, convertendo para os valores atuais, cerca de R$ 10 mil reais.

Um dos sócios da Servicine, o Palácios, ele conhecia história do cinema. Adorava o cinema, foi um dos proprietários do Estúdio Maristela, em São Paulo. Foi quando o estúdio quebrou que ele se associou ao Galante, que era eletricista. Ele era responsável pelas lâmpadas e refletores no Maristela, mas ele tinha faro para negócios. Ele tinha dificuldade de ler os roteiros. O Palácios ou a gente mesmo lia os roteiros para ele, e ele ia direto nas coisas que não podia fazer em termos de produção, assim como dava muitas ideias para dialogar a história com o público, porque eles precisavam do público. Não tinha subsídio do governo para não fazer diferença se deu bilheteria ou não. Esse é o mal do financiamento público. Hoje, por exemplo, o Banco do Brasil no Rio de Janeiro presta um desserviço ao teatro brasileiro, porque os caras montam umas chatices vanguardeiras, pegam o dinheiro, que dá para cobrir seus ensaios, a bilheteria e mais os três meses que a peça fica em cartaz. Eles precisam arriscar alguma coisa? Precisam dialogar com o público? Não. Então você tem um teatro que não dialoga, que o público entra, não sabe o que é e sai pensando que é burro. E depois o público não vai mais, tanto que é a coisa mais fácil encontrar ingresso para essas porcarias. Além disso, há os grupinhos que mantêm esse monopólio. Isso tudo abastardou a cultura brasileira.

CS: E você vê isso se refletindo na qualidade dos filmes também hoje?

MS: Sim, claro. Eu acho o cinema brasileiro hoje muito ruim. Há exceções, como o cinema nordestino, de Pernambuco, do Ceará. É onde há ainda um vigor. Agora o cinema carioca não existe mais; é um derivativo mais pobre da Globo. Pobre não de verba, mas de ideias. O de São Paulo parece ter raiva de ser brasileiro. E é insuportável também porque é tudo subsidiado. Se alguém viu, ótimo; se não, tanto faz, o diretor já está partindo para outro projeto mesmo.

a floresta de jonathas begê muniz sérgio andradeCS: E quanto às produções locais. O que pensa delas?

MS: Eu não vejo. Não tenho acesso. Agora que eu vou ver “A Floresta de Jonathas”, porque o Sérgio Andrade me deu o DVD. Há uma briga agora, a turma que fez um filme chamado “Sete Palmos de Terra e Um Caixão”, contra isso de “A Floresta de Jonathas” ser o primeiro longa-metragem de ficção recente no Amazonas, etc. etc. “A Floresta de Jonathas” eu vou ver agora, mas esse outro filme estava enterrado demais, porque a gente não sabe nada sobre esse filme.

CS: Ele está sendo lançado como uma web série agora.

MS: Eu vi, mas 10 minutos? Deve ser uma dificuldade mesmo, custa tão caro fazer cinema. É uma das coisas que me fez desistir do cinema. O Djalma Limonge Batista, por exemplo, fez apenas três longas, “Asa Branca: Um Sonho Brasileiro”, “Brasa Adormecida” e “Bocage, o Triunfo do Amor”. Cada filme levou dez anos para produzir. Difícil, né? O que me irrita numa parte dessa nova geração de fazedores de vídeo é que eles não sabem nada sobre história do cinema. Você fala de Méliès, eles não sabem quem é. Nunca ouviram falar. Eles só conhecem esses filmes que passam aqui, o que não é culpa deles. Mas hoje você tem acesso, mesmo aqui no Brasil. Hoje você tem todos os filmes mais clássicos da história do cinema em DVD e com legendas em português. Muitas vezes, nós assistimos a filmes no GEC sem legenda, mas como a gente gostava de cinema, superava isso. A gente estudava o que um filme queria dizer. Os filmes do Eisenstein, por exemplo, não tinham legenda em português. Às vezes tinha em francês ou inglês. A minha geração estudava essas línguas na escola, até grego e latim. Hoje há pessoas que não conseguem nem ler as legendas, o filme tem que estar dublado.

Ida Pawel PawlikowskiCS: Quanto aos filmes que você tem visto ultimamente? O que te chamou a atenção?

MS: Eu não sigo muito a produção atual. Eu procuro mais filmes aos quais não tive acesso antes, que nunca chegaram aqui. Teve um período em que Manaus não tinha luz elétrica, então aqueles filmes dos anos 1930, 1940 não chegaram aqui. Agora acompanho também alguma coisa, como esse filme polonês do Oscar, o “Ida”, que é maravilhoso e faz jus à tradição do cinema polonês, com qualidade técnica, ousadia da narrativa, sensibilidade. E tudo isso com um tema que já foi tão explorado [a relação do judaísmo com o pós-guerra]. Da primeira vez que fui a Israel, no Museu do Holocausto, muitas das informações apresentadas ali eu aprendi pelo cinema, aqui em Manaus. Hoje o cinema não te dá isso. Aliás, ontem eu assisti em casa o finalzinho de um filme americano, enquanto esperava para ver o noticiário. Era “Cowboys vs. Aliens”. É o máximo que eles conseguem fazer. Uma perfeição, do ponto de vista técnico, mas que quer dizer aquilo? É uma narrativa bem feita, que dialoga com o público porque se não dialogar, vão à falência. Aí já é um outro exagero, um outro extremo de buscar se aproximar do público, sem dizer nada e ter mais que lucro; é ter super lucro. No meu livro “A Substância das Sombras”, há uma análise sobre Hollywood e todos esses processos.

interestelar matthew mcconaughey christopher nolanCS: Qual foi o último filme que você viu no cinema?

MS: No cinema? Foi aquele filme americano, qual é o nome? De ficção científica. Nem guardei o nome, era uma besteira. Tem uma viagem por um buraco negro…

CS: Interestelar?

MS: Isso mesmo. Ridículo esse filme. É uma reunião de talentos para fazer uma grande besteira. Eu vi quando viajei para Paris, em 3D.

CS: E aqui em Manaus? Como foi sua última experiência numa sala de cinema?
MS:
A última vez que fui no cinema em Manaus, ainda era no Cine Avenida, acho. Na verdade, eu tentei uma vez no Amazonas Shopping. Fui ver um filme americano, que nem lembro mais qual era, mas ali fiquei muito irritado. E isso continua, porque eu pergunto às vezes para quem ainda vai ao cinema “E aí, melhorou?”, mas sempre me respondem “Não, continua cada vez pior”, então eu não vou. Mesmo essas sessões de clássicos que tem agora, eu não vou. Já tenho tudo em casa e vejo numa tela grande, no meu cineminha. Comprei a tela, um projetor de altíssima definição, som estereofônico, 3D, se eu quiser, então não faz tanta falta assim. Eu vi aqui “O Monstro da Lagoa Negra”, aquela série de filmes de terror da Universal, e tem esse que se passa no Amazonas. Eu vi no cinema, no Cine Avenida, em 3D. Outro que vi em 3D foi o “Disque M para Matar”, do Hitchcock, no Cine Odeon. Agora eu vejo em casa, com o mesmo efeito. Alguns cinemas de arte em Paris têm uma tela menor do que essa que tenho em casa [risos].

CS: Qual é o seu filme favorito?

MS: Eu gosto muito do “Em Busca do Ouro”, do Chaplin, “A Paixão de Joana D’Arc”, do Dreyer, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, do Glauber, “O Silêncio”, do Bergman. Ah, e de toda a obra do Buñuel. Tenho todos os filmes dele em casa, em várias versões. De vez em quando eu revejo esses filmes.

CS: Sobre seus livros de cinema, temos o primeiro deles, que é “O Mostrador de Sombras” (1969). Onde ainda é possível encontra-lo?

MS: Na Biblioteca Pública tem, assim como a do Sesc. Aqui tinha a uma entidade ligada ao Clube da Madrugada e eles editaram três livros, e dentre eles “O Mostrador de Sombras”. O editor foi o Francisco Vasconcelos, da Academia de Letras. Eu nem queria editar, nem tinha reunido os textos. Foi o Felipe Lindoso que coletou e datilografou para mim esses artigos para o livro. Eram todos artigos publicados em jornal. Havia ensaios sobre a filmografia de diretores como o Luis Buñuel, o Federico Fellini, mas também tinha textos sobre temas como o cinema de terror, por exemplo, e textos voltados a produções daquele período como “Igual a mim… igual a ti” e “Um Pintor Amazonense”, do Roberto Kahané. Ele restaurou agora alguns desses filmes, que eram em 8mm.

CS: De 1969, com “O Mostrador de Sombras”, você só trouxe outra publicação tendo o cinema como foco em 1999, com “Silvino Santos: o Cineasta do Ciclo da Borracha”. Como nasceu a ideia para livro?

MS: Veio a ideia de fazer o livro e a Selda [Vale da Costa] também ficou me cobrando. Eu tinha esse livro pronto e, de início, a versão que se tinha do filme do Silvino era de cerca de 70 minutos, enquanto que a versão atual do que se conseguiu através de pesquisas possui mais de 2 horas. Aliás, esse ano lançaremos o filme do Silvino sobre Parintins, de 1954, em cores, além do “O Rastro do Eldorado”. Já no ano que vem, sai o “Terra Encantada” e o primeiro filme dele, “Amazônia, o Maior Rio do Mundo”, que foi roubado dele e o Sávio [Stoco] encontrou o filme na Cinemateca de Berlim com o nome do ladrão. Todos esses filmes serão restaurados e lançados em DVD. A minha ideia é fazer uma caixa em 2015 e 2016, com livreto e ensaios sobre os filmes, inclusive com uma autobiografia que o Silvino escreveu.

CS: E se descobriu mais alguma coisa interessante lá, além desse filme do Silvino?

MS: Agora o Sávio, fuçando pela internet com a cinemateca alemã, recebeu uma lista ainda do período silencioso dos filmes brasileiros que eles têm lá. Há pelo menos um filme por ano que foi rodado na Amazônia. Ainda não sabemos o que é, até agora ele só repassou a cópia da lista e só pelos títulos não sabemos se foi rodado no Amazonas, no Mato Grosso ou no Pará, então ele vai lá esse ano, ficar “enterrado” na cinemateca, e depois vamos negociar para termos cópias digitais dessas produções. Não é viável trazer os originais aqui porque não temos como guardar e preservar. Por exemplo, estou preocupado com o acervo do pai do Roberto Kahané, que filmava em 16mm desde os anos 1950 e que tem imagens fantásticas da Manaus da época, além do acervo do próprio Roberto. Também vamos ajudá-lo a terminar um longa que ele fez em 1969. Hoje isso está tudo guardado com ele, o que é um perigo, porque apesar de ele manter com cuidado, não tem os requisitos hoje recomendados para se guardar negativos. Hoje só a Cinemateca Brasileira teria condições de preservar esse material; aqui em Manaus não.

a substância das sombras márcio souzaCS: Quanto ao seu livro “A Substância das Sombras”, ele tem uma história diferente dos livros anteriores, não?

MS: É uma história engraçada. Eu organizei um curso de cinema lá no Sesc. Tinha o Óscar [Ramos] falando sobre direção de arte, veio um pessoal para falar sobre som, imagem, o Tomzé [Antônio José Vale] com história do cinema. Montei uma apostila para distribuir aos alunos, que servisse como uma introdução ao cinema, e procurei o Tenório [Telles], pedindo uma indicação de gráfica barata para fazer as apostilas. Só que o Tenório disse “Isso não é apostila; isso é um livro. Vamos lançá-lo”. Aí ele fez, inclusive com várias fotos dos filmes, a maioria imagens de divulgação. Ficou muito lindo o livro, e ainda traz uma aproximação com a produção daqui quando falo sobre o “A Selva” e os filmes do Silvino Santos.

meirellesCS: Numa entrevista sua ao Roda Vida, você comentou que fez uma autocrítica e por isso também se afastou do cinema, coisa que alguns cineastas deveriam fazer. Quem você acha que precisa de uma autocrítica dessas hoje?

MS: Quando estreou “A Selva” lá no Cine Paysandu, no Rio de Janeiro, um amigo meu foi e disse que um espectador ficou tão enfurecido por não ter gostado do filme que quebrou uma cadeira da sala de exibição. Esse meu amigo mandou um pedaço da cadeira num pacote. A lista de quem podia fazer uma autocrítica é longa. Pra começar, o Fernando Meirelles. Ele sempre desvirtua os livros nos quais se baseia. Aquele “Cidade de Deus” é um horror, “Ensaio Sobre a Cegueira” também, transformou o livro do Saramago em disaster movie, assim como a aventura na África que se tornou o “O Jardineiro Fiel”. O romance original é uma crítica barra pesada à indústria farmacêutica, e no filme, só faltou aparecer o Tarzan. Para completar, no vídeo que ele fez para a Copa, ele apagou as favelas dos morros. Esse devia arrumar outro ofício ou ir para Hollywood de vez.

CS: Pra finalizar, fala um pouco sobre seu filme novo, “O Teatro na Amazônia”. Já teve o lançamento?

MS: O lançamento vai ser em Belém, agora em maio de 2015. É um longa-metragem de cerca de 90 minutos. Fala sobre a história dos 40 anos do Teatro Experimental do SESC Amazonas (Tesc) e passa em revista imagens de todas as peças que foram encenadas nos últimos 10 anos. Aí tem debates, entrevistas, viagem de nossa turnê na França, as oficinas feitas no interior do Estado.