Com “Moana: um mar de aventuras” (Moana, 2016), a Disney mantém a tradição de investir no tipo de personagem que marcou a história da gigante da animação: a figura da princesa. Nesse final de segunda década do século XXI, no entanto, ela passa por uma interessante reconfiguração filme após filme, dialogando melhor com as aspirações e potencialidades do público-alvo direto, as meninas, ao passo que abre espaço para que as construções sociais que fazem as ditas “coisas de meninos” também encontrem escopo para que eles curtam tanto quanto elas um filme como “Moana”. Resumindo: temos nessa animação um grande acerto, mercadológico (para o estúdio) e educativo (para as crianças e pré-adolescentes).

Dentre os pontos que demarcam esse acerto, o primeiro fica por conta da opção clara de não atrelar a trama da personagem principal a um interesse amoroso. É um movimento não necessariamente novo, bem testado em filmes do gênero como “Valente” (Brave, 2012) e “Frozen – uma aventura congelante” (Frozen, 2013), por exemplo. De tradicional, temos o arco clássico de jornada do herói, na qual a personagem principal, a filha do chefe de uma aldeia polinésia, Moana (voz de Auli’i Cravalho), empreende uma aventura para que sua tribo, a qual liderará um dia, tenha de volta o alcance aos recursos naturais que se escasseiam graças a uma maldição. Claro, tudo isso é entrecortado por números musicais empolgantes, tocantes ou simplesmente divertidos, com canções que não esquecem de retrabalhar elementos que remetam à cultura da protagonista.

Moana: Um Mar de Aventuras

Moana, então, empreende a tal jornada, que é enriquecida na medida em que o subtexto destinado a ela fala bastante que a aventura em prol de seu povo, é, também, uma missão de autoconhecimento. Como uma jovem mulher, ela busca sua identidade no mundo, mas ao contrário de animações como “A pequena sereia” (The little mermaid, 1989), essa busca não faz com que a protagonista feminina abdique de seu universo e cultura; ao contrário, é a redescoberta da história dos polinésios como grandes exploradores marítimos (historicamente correto) que Moana encontra impulso para procurar, fora dos limites impostos por seu pai como seguros, a solução para os problemas da tribo. É um subtexto relevante, que cria um eixo unindo autodescoberta e valorização enquanto membro de uma etnia, distanciando-se de um discurso explícito de superioridade de uma cultura ocidental e/ou modernizada.

Entre erros e acertos

Ainda que a Disney tenha dado um tiro no pé alguns meses atrás ao comercializar uma fantasia de Haloween do personagem Maui que dava bastante brecha para ser considerada racista, o filme em si tenta equilibrar uma representação respeitosa do povo polinésio bem mais do que já fez no passado. A tribo de Moana, por exemplo, ganha uma canção bacana sobre como vivem em harmonia com os recursos naturais, utilizando-os sem desperdício e sem prejudicar o meio ambiente; não vemos no filme elementos que poderiam ser tidos como estereotipados ou representações de um povo “atrasado”. Mostra-se bastante também a imponência dos feitos históricos dos polinésios como navegadores, inclusive com uma sequência que conta com uma canção cantada numa língua nativa. Não precisa ser um antropólogo para ver que há lacunas nessas representações, mas para um filme de animação de um grande estúdio, até que houve um mínimo de comprometimento com elas.

Moana: Um Mar de Aventuras

Outro ponto positivo é que tudo isso é exposto para os mais novos de maneira simples, sem didatismos chatos. Aos adolescentes e adultos há o plus de se perceber a riqueza por trás das mensagens mais aparentes do longa, o que o torna marcante para todo tipo de público. E como a Disney não é boba, ela equilibra essa evolução nas suas narrativas com os elementos clássicos que não envelheceram mal (muito pelo contrário!), como a busca por personagens de apoio com veia cômica.

Quem preenche essa vaga em “Moana” é Maui (voz de Dwayne Johnson), um humano transformado em semideus que, com seu anzol mágico, consegue se transformar em vários animais. Na animação, ele roubara uma pedra que era o coração da deusa Te Fiti, perdendo-a logo em seguida num ataque do demônio Te Ka. Um milênio depois, quando Moana encontra a pedra, a aventura propriamente dita começa, pois o retorno da pedra à Te Fiti garantiria a fertilidade das terras novamente.

Moana: Um Mar de Aventuras

Ainda que muitos tenham criticado o design do personagem para Maui, que é representado não como um ser musculoso, mas como um homem obeso (assunto delicado nas ilhas do Pacífico, pois a obesidade é um problema moderno na região), a interação dele com Moana é sempre tão divertida que acabamos nos esquecendo disso. Fica na mente muito mais a cômica falta de noção e egocentrismo, que aos poucos vão sendo transformados pela busca de um algo maior encabeçada por Moana, e tudo isso sem ele virar um “príncipe” para ela na trama. Aliado a ele na ala dos elementos engraçados, estão a galinha maluca Heihei (voz de Allan Tudyk, que não escapa de dublar algum personagem de um filme de sucesso da Disney) e os fofos, porém perigosos, Kakamora, e uma espécie de corja de piratas-cocos (sim, é isso mesmo).

Como último adendo à questão de desenho dos personagens, é interessante pontuar que um produto como esse, voltado majoritariamente ao público infanto-juvenil, tem uma protagonista de cor e traços realistas. A pele de Moana e de todos de sua tribo é morena, ao contrário dos deuses do Egito ou figuras bíblicas brancas de olhos azuis que vemos comumente no cinema; o figurino da jovem é funcional e contextualizado, e cobrem um corpo sem seios grandes ou cintura acentuada. Pelo menos nesse sentido, o acerto é de 100%, avaliação que podemos generalizar para a qualidade dos gráficos também, com destaque para os cabelos dos personagens e os movimentos da água do mar. Estes últimos, aliás, são lindos nas cenas com a avó de Moana, Tala (voz de Rachel House).

Moana: Um Mar de Aventuras

“Moana” prova à Disney que a repaginação das narrativas de suas princesas é mandatória, uma vez que é difícil não curti-las em um filme como esse. O próprio estúdio, na sacada do roteiro a oito mãos de John Musker, Ron Clements, Taika Waititi e Jared Bush, parece brincar com isso, na cena em que Maui implica com a protagonista ao dizer que uma princesa jamais poderia ser uma exploradora dos mares, ao passo que Moana responde que não é uma princesa, e sim a filha do chefe da tribo. “Se você tem um vestido e um animal de companhia, é uma princesa!”: essa a resposta de Maui, numa metáfora divertida da transformação de narrativas que buscam o velho e conhecido efeito de encantar o público, ainda que através caminhos novos.

Moana: Um Mar de Aventuras