Por um bom tempo ainda, qualquer filme que o estúdio Warner Bros. lance com a vinheta da DC Comics vai carregar o estigma do “sério e sombrio”, a visão do cineasta Zack Snyder –herdada do Christopher Nolan – que inaugurou o universo dos super-heróis DC no cinema. No entanto, pouco a pouco, os filmes desse universo vão exorcizando o “encosto snyderiano”, comprovando o quão equivocada era a visão desse sujeito e o quanto o estúdio Warner errou em lhe dar o comando dessa empreitada lá atrás. Mulher-Maravilha (2017) e Aquaman (2018) já se destacaram da leva ao se mostrarem solares, otimistas e… divertidos – Afinal, estamos falando de filmes com seres com poderes malucos enfrentando vilões malvados, ora bolas! Agora, Shazam! chega para representar o verdadeiro exorcismo final. Não à toa, o vilão do filme é um sujeito realmente possuído por forças das trevas que enfrenta um personagem colorido e divertido. Adivinha quem é mais forte?

É um filme bem bobo e, apesar disso – ou talvez por causa disso – bem divertido. O roteirista Henry Gayden e o diretor David F. Sandberg são inteligentes o bastante para abraçar a tolice inerente ao conceito do personagem, ao mesmo tempo em que nos fazem rir com a experiência, nunca dela. Shazam na verdade é a palavra mágica que Billy Batson (vivido pelo ótimo Asher Angel) precisa dizer para se transformar no super-herói de roupa vermelha e raio no peito (o divertidíssimo Zachary Levi, o grande acerto da produção). E quem é Billy Batson? Um órfão, à procura da mãe biológica, de quem se perdeu quando pequeno, e que reluta em se tornar parte de uma família adotiva de outros órfãos. Um desses órfãos, Freddy (o também muito divertido Jack Dylan Grazer), se torna amigo do personagem super-poderoso e o faz se tornar famoso. No entanto, ele não deixa de continuar sendo uma criança, e precisa amadurecer bastante.

E como Billy conquista esse poder? Bem, ele é encontrado por um mago (Djimon Hounsou) que mora numa caverna e lhe fornece os poderes de Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio – não pergunte… E quem é o vilão? Ora, o doutor Silvana (Mark Strong, num papel meio ingrato), que também foi chamado pelo mago, mas preferiu os poderes da escuridão – de novo, não pergunte. Se tudo isso parece meio bobo explicando aqui, você pode ter certeza de que é bobo também na tela. Mas funciona, assim como Mulher-Maravilha e Aquaman, que também convidavam o espectador a aceitar alguns conceitos tolos. Funciona até um pouco melhor que eles.

 

FIDELIDADE AO PERSONAGEM

Funciona por causa da já mencionada inteligência dos seus narradores e pelo fato de o filme ter, em meio a todas as confusões, um coração. O tema da família é abordado aqui, assim como em vários filmes de heróis, mas com sensibilidade. A dor de Billy é genuína, assim como a corrente subentendida de tristeza por trás da agitação de Freddy. Há um estofo emocional dentro da história, e os atores também contribuem bastante para isso. Além dos já mencionados Angel, Levi e Baker, outras figuras roubam a cena de vez em quando, como Hounsou e algumas das crianças, verdadeiras revelações como a gracinha Faithe Herman como Darla e o divertido Ian Chen como Eugene.

O filme não deixa de ter seus problemas, entretanto. A jornada de Billy é meio previsível, afinal embora o roteiro não deixe de satirizar algumas convenções das narrativas de super-heróis – nunca de uma maneira ácida como um Deadpool (2016), claro – ele também não foge a elas. O doutor Silvana é muito unidimensional e as cenas no início, que mostram a sua origem, são sem dúvida as piores do filme.

Com 2h10, é mais longo do que precisava ser, seu tom de aventura despretensiosa com clima de Sessão da Tarde não combina com essa duração exagerada. Ainda assim, há lances criativos, como algumas cenas com Levi e a primeira aparição dos Pecados, criaturas horrendas que permitem a Sandberg exercitar um pouco da sua veia de realizador de terror – antes de Shazam!, ele comandou Quando as Luzes se Apagam (2016) e Annabelle 2: A Criação do Mal (2017), duas produções que não reinventaram a roda do terror, mas se mostraram razoavelmente competentes. E falando em Sessão da Tarde, há momentos no filme que remetem a clássicos dos anos 1980 – Uma citação a Quero Ser Grande (1988) é, além de divertida, apropriada.

É exatamente esse o espírito de Shazam!: Fazer com que o espectador se divirta abraçando a sua criança interior, ao invés de querer transformá-la a força num adulto amargurado levando excessivamente a sério o conceito de super-heroísmo. E antes que algum incauto venha dizer que Shazam! imita os filmes do Marvel Studios – e ironicamente, por muito tempo o personagem foi chamado de Capitão Marvel… Vale lembrar que a DC é sim, colorida, divertida, além de épica e fortemente baseada nos mitos antigos. Ela foi sombria em diversos momentos? Sim. Mas não foi sempre, não foi nem na maior parte da sua existência.

Mesmo Batman, o personagem sombrio da DC, simboliza o bem, algo positivo em Gotham City. Shazam! não imita a Marvel, ele apenas é fiel ao conceito do próprio personagem. Seus realizadores não quiseram tornar Shazam! sombrio, o que certamente deformaria o conceito e naufragaria o projeto. Se aquilo que o  Snyder pôs na tela era “adulto” – paradoxalmente me parecia até mais caricato que qualquer coisa em Shazam! – então, felizmente dessa vez, a DC/Warner acertou ao deixar as crianças sem supervisão de um adulto responsável.