É uma realidade da existência, igual à morte e os impostos: hoje em dia, qualquer um com um teclado e acesso a internet consegue postar sua opinião sobre qualquer coisa e ser lido por pessoas do mundo todo. É a democratização da informação, e longe de mim querer dizer alguma coisa em contrário a ela – afinal, é o meu e nosso meio de vida aqui no Cine Set. Porém, como tudo na vida, essa democratização tem dois lados, e quando ela vem acompanhada da má e velha intolerância humana, aquela que é tão característica da nossa espécie quanto o polegar opositor, temos as famosas polêmicas. Afinal, ninguém disse que a democratização não incluiria alguns bocós e fanáticos… E o fanatismo é a morte do debate.

Quando falamos de cinema, isso não é diferente. No mundo imediatista e de respostas rápidas em que vivemos, não há muito espaço para discussão: geralmente, quando o primeiro trailer de um novo blockbuster de Hollywood é lançado, ele é rapidamente rotulado como “vai ser uma m****”, ou “a melhor coisa de todos os tempos [da última semana]”. E essas percepções iniciais cada vez mais interferem na maneira como apreciamos os filmes.

Vamos lembrar alguns casos recentes de fortes reações emocionais a projetos hollywoodianos, e usá-los para refletir sobre as nossas expectativas.

Finn em Star Wars: O Despertar da Força

Paixão: O Despertar da Força e os filmes que adoramos antes mesmo de ver

A marca Star Wars, por si só, já desperta mais de emoção do que todos os outros grandes lançamentos, por isso a comoção foi grande, tanto antes quanto depois do lançamento de O Despertar da Força. O diretor J.J. Abrams, chegado a um mistério, conseguiu preservar as surpresas da produção, cujos trailers e campanha de divulgação não revelavam a trama do filme – uma façanha e tanto, hoje em dia. Mas essa mesma campanha de divulgação também foi esperta o bastante para assegurar ao público que o novo filme seria próximo do estilo da trilogia original e distante dos problemas da trilogia prequel. O resultado foi um filme que agradou à grande maioria de fãs da franquia e ao público em geral, ainda que críticas tenham pipocado aqui e ali a respeito da trama reciclada dos velhos filmes e do apelo à nostalgia.

Mas esse foi um caso de filme que já vimos. E quando muita gente decide gostar do filme antes mesmo de vê-lo? Temos visto exemplares disso em anos recentes, com o velho fanatismo dando as caras. Quem se esquece do crítico americano Marshall Fine, que recebeu ameaças de morte via internet apenas por ter ousado postar, antes da estreia, a primeira resenha negativa de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) no site agregador de críticas Rotten Tomatoes?

Aliás, esse sentimento extremado, de defesa dos seus super-heróis favoritos (comparável à polarização brasileira entre coxinhas e petralhas), tem levado a aberrações como a recente balela de que os críticos americanos teriam sido pagos pela Disney, distribuidora dos filmes do Marvel Studios, para falar mal de Batman Vs. Superman: A Origem da Justiça, o concorrente da Warner Bros. e da DC Comics . De novo, é o caso do imediatismo e das respostas fáceis assumindo o lugar do debate real sobre os méritos e deméritos do filme de Zack Snyder.

Star Trek: Além da Escuridão

Medo: Rogue OneStar Trek: Sem Fronteiras

Se O Despertar da Força acabou angariando uma expectativa positiva desde o começo, o mesmo não se pode dizer de Rogue One, o primeiro derivado da franquia Star Wars que chegará às telas no final do ano. As recentes notícias envolvendo refilmagens e insatisfação com o primeiro corte do filme provocaram preocupação nos fãs, embora a prática de refazer cenas não seja de modo algum rara em blockbusters de Hollywood. E o filme também se trata de um projeto especial por ser o primeiro Star Wars a contar uma história à parte das conhecidas trilogias da saga, então é até natural que os produtores ainda estejam determinando o formato e o tom do projeto.

A outra grande franquia espacial hollywoodiana também experimentou uma recente onda de medo em relação ao seu filme mais recente. Quando a divulgação de Star Trek: Sem Fronteiras teve início, pareceu um caso de ódio à primeira vista, pois o primeiro teaser lançado foi muito criticado. Ação? Uma moto em Star Trek? Diretor de Velozes e Furiosos? Sabotage dos Beastie Boys na trilha? Bem, ela tocou no primeiro filme do J.J. Abrams, e de repente todo mundo se esqueceu de que os filmes para cinema da franquia sempre foram voltados para a aventura desde o clássico A Ira de Khan de 1982… Mas o segundo trailer, lançado alguns meses depois, meio que reverteu essa má vontade inicial com a produção ao mostrar um pouco mais da história e dos personagens. Embora ainda estejamos no escuro sobre a produção – afinal, Abrams é um dos produtores – o marketing do filme conseguiu dar a volta por cima e hoje, Sem Fronteiras até experimenta certa antecipação, perto da sua estreia.

Melissa McCarthy, Kristen Wiig, Kate McKinnon e Leslie Jone em primeira imagem oficial do novo Os Caça-Fantasmas

Ódio: Caça-Fantasmas

A internet às vezes embarca na onda do “Não vi e já não gostei” e isso acontece especialmente quando produtores de cinema resolvem mexer nos retratos estabelecidos dos heróis das telas ou de outras mídias. Ora, quem se esquece do boicote de alguns imbecis a Mad Max: Estrada da Fúria (2015), devido ao que eles perceberam, antes mesmo de ver o filme, como “agenda feminista”? Ou da escalação de Michael B. Jordan para a nova versão de Quarteto Fantástico (2015)? Jordan, que é negro, teve de aguentar a choradeira de uma parcela dos fãs de HQs por interpretar o Tocha Humana, que, nas historinhas, é branco.

Mas nenhuma controvérsia do tipo se comparou à de Caça-Fantasmas, do estúdio Sony Pictures. O que deveria ser um sucesso garantido, a nova versão da adorada comédia de 1984 virou uma polêmica generalizada para o estúdio quando foi anunciado que o diretor Paul Feig escalaria atrizes para os papéis das Caça-Fantasmas e… Digamos, certos setores da internet não reagiram bem ao fato de mulheres assumirem o lugar dos heróis masculinos. Feig teve de aguentar inúmeros ataques de misoginia virulenta no Twitter e no YouTube, direcionados às suas atrizes, no maior exemplo recente de gente destilando ódio a um filme, antes mesmo da produção ter início. Porém, além da misoginia, é necessário dizer que, mais tarde, o primeiro trailer divulgado da produção não conseguiu agradar – até o diretor criticou o vídeo – e acabou piorando a situação. Se o estúdio conseguiu reverter essa negatividade com os trailers seguintes ou não, os números da estreia em breve vão dizer.

Independente da qualidade do filme – em breve poderemos conferir – o fato é que Caça-Fantasmas representa uma aposta ousada da Sony. Sinceramente, o único jeito de fazer algo que agradasse a todos com essa marca ainda tão popular e pouco explorada seria uma continuação dos filmes dos anos 1980, mas essa opção nunca foi viável depois da morte de Harold Ramis, que fazia o doutor Egon Spengler, e do eterno desinteresse de Bill Murray em voltar à franquia depois do fraquinho Os Caça-Fantasmas 2 (1989). Hoje em dia, estúdios vêm adotando estratégias diferentes ao retomar velhas propriedades do passado: ou fazem refilmagens disfarçadas de continuações, como Jurassic World (2015) ou o recente Procurando Dory (2016), apostando no seguro; ou fazem produções com a “passagem da tocha”, onde os velhos astros do passado servem para introduzir uma nova geração de personagens que conduzirão as franquias para o futuro. Essa última estratégia foi usada com sucesso em O Despertar da Força e em menor escala, em Creed: Nascido para Lutar (2015).

Nenhuma dessas opções era possível em Caça-Fantasmas, daí a ousadia. O caso do filme é um exemplo de apego nostálgico excessivo – sério, é bem difícil que esse novo filme seja pior que Os Caça-Fantasmas 2 – misturado a uma boa dose de ódio contra mulheres. Por toda a má vontade em torno dele, é até curioso que as primeiras críticas tenham sido em geral positivas. No momento de publicação deste artigo, Caça-Fantasmas possui um índice de aprovação de 75% no Rotten Tomatoes. Vamos esperar para ver a palavra final do público…

Hollywood

“Não vi e não gostei” vs. “O melhor filme de todos os tempos”

Controvérsias e pré-julgamentos às vezes até são bons para Hollywood, pois ajudam a chamar a atenção para os projetos. E no fim das contas, é isso que importa para os produtores da indústria: que paguemos os ingressos, não importa que caminho ou informação nos fez chegar ao interior da sala de cinema.

E qual é o papel da crítica cinematográfica nesse mundo de opiniões rápidas, fanatismo e pouca reflexão? Ora, é o de justamente tentar trazer alguma reflexão ao processo de se assistir a um filme. A discussão em torno da arte e do seu valor deve ser mais profunda que essa dicotomia. A percepção da arte é subjetiva, claro, por isso mesmo é importante dedicarmos nosso “amor” ou nosso “ódio” a cada filme apenas depois de vê-lo, e após uma reflexão. É assim que a arte evolui e nós também, como seus receptores. E a crítica de cinema serve, especialmente, para provocar e estimular esse processo.

Afinal, disse a crítica americana Pauline Kael: “O crítico é a única fonte independente de informação, o resto é publicidade”.