É difícil lembrar hoje, mas o Os Incríveis original, lançado em 2004, foi o primeiro longa de animação em CGI a trazer personagens humanos realmente convincentes, que não eram propositalmente satíricos, nem estilizados ao ponto do exagero. A qualidade da animação, detalhada e comedida, ajudava, mas o roteiro de Brad Bird, que explorava menos as possibilidades épicas e explosivas de uma família de super-heróis do que a situação, extraordinariamente tragicômica, de ter que se adaptar à mediocridade de uma vida humana normal, fizeram do filme o mais empático, o mais adulto, e talvez o mais original produto do estúdio Pixar em sua longa e querida trajetória – além de o maior candidato, desde Toy Story, a ganhar sua própria sequência.

14 anos depois, ela veio. E, felizmente, é o melhor trabalho da Pixar desde Divertida Mente (2015), além de ser a única das várias sequências que o estúdio lançou nos últimos anos a manter o alto nível do original. Os Incríveis 2 pinga charme de seu novo enredo, dos novos personagens, do deslumbre de sua animação e da música de Michael Giacchino, mas sua maior virtude é a leveza com que ele atualiza a saga da família Pêra e a traz para o mundo, muito diferente, de 2018. Isso, claro, em seu melhor lado. Mesmo com todas essas qualidades, faltam ao novo filme a mesma pungência, a mesma ressonância emocional, do clássico de 2004, principalmente pelo fato de Bird não ter nada de novo a dizer do seu exame das tensões entre aspirações e realidade, individualidade e conformação, pais e filhos e maridos e esposas. Mesmo assim, que material formidável para uma animação, não?

O novo trabalho começa do ponto exato em que o último terminou. Os Incríveis se unem para tentar deter o Escavador, um vilão que constrói uma máquina monumental para roubar os bancos da cidade. O que eles conseguem, mas ao custo de um prejuízo fabuloso de prédios, vias e veículos destruídos. Em vez de agradecidos, os políticos estão furiosos. Tivessem o Sr. Incrível e sua família apenas deixado o Escavador seguir seu plano, os bancos roubados receberiam o seguro, e quarteirões inteiros seguiriam intocados (o custo humano, claro, não entra na contabilidade). Os Incríveis estão ilegais de novo, e a opinião pública está mais contra os super-heróis do que nunca. Até que o magnata das comunicações e fã de heróis Winston Deavor (voz de Bob Odenkirk, o Saul de Breaking Bad e Better Call Saul, no original) surge com um plano: para que as pessoas conheçam a índole de seus defensores, elas precisam vê-los – em mais uma esperta alusão à mentalidade atual, se não está na rede, não aconteceu. Eis que Winston e sua irmã, a gênia inventora Evelyn (Catherine Keener) bolam um traje com câmeras que registra em tempo real os desafios mortais que os super-heróis têm de enfrentar para salvar as pessoas. Para estrear a ferramenta, eles escolhem, para surpresa da família, a Mulher-Elástica – as estatísticas dizem que ela é muito mais cuidadosa ao realizar suas missões do que o marido.

A surpresa, claro, coloca mais um elemento volátil na tensão conjugal entre o casal de heróis, que na intimidade são os pacatos Beto (Sr. Incrível – voz original de Craig T. Nelson) e Helena Pêra (Mulher-Elástica – voz de Holly Hunter). Dessa vez, a mulher assume o protagonismo – e Beto descobre, a contragosto, as dores, mas também as delícias, da vida doméstica. Em meio a tudo isso, um novo supervilão, o Hipnotizador, está à espreita, induzindo pessoas inocentes a cometer crimes usando a mesma ferramenta de promoção dos Incríveis – a tela das TVs, celulares e computadores.

Ou seja, nada de novo, e cada tema, individualmente, já foi tratado com mais agudeza em outros filmes – mas a combinação, nas mãos ágeis e cheias de timing de Bird, é mais uma vez irresistível. As sequências de ação são uma aula para os realizadores da Marvel, com o tempo exato para cada evento deixar sua marca na memória do espectador – o começo, com a luta contra o Escavador, e a perseguição de Helena ao trem hackeado são excepcionais. Os personagens têm o capricho de sempre: os dramas individuais de Beto, Helena e dos filhos Violeta e Zezé são convincentes, e rendem ótimos momentos de humor e drama – só o filho do meio, Flecha, está aqui a passeio. Os novos coadjuvantes, como a heroína aspirante Voyd, uma moça tímida e nerd que se vê empoderada por Elástica, além do novo peso que o melhor amigo do Sr. Incrível, Gelado (Samuel L. Jackson), tem na história, trazem a sempre bem-vinda carga de diversidade. A animação parece cada vez mais detalhada e esfuziante. E a música de Giacchino é verdadeiramente superlativa: cada intervenção sua enriquece imensamente o subtexto, humorístico e emocional, do que está na tela, com uma sutileza e elegância que ele não alcançava desde Up – Altas Aventuras (2009).

Apesar disso, não é um Toy Story 3, ou mesmo um Ratatouille, o outro grande filme de Bird na Pixar: as sagas dos brinquedos e do rato cozinheiro eram tão comoventes, e foram pontos tão culminantes na história da Pixar, devido à sua ferrenha recusa em saciar expectativas. Assim como o Os Incríveis de 2004, esses filmes não tinham medo de jogar seus personagens em tumultos emocionais muito mais densos do que o esperado para filmes infanto-juvenis – os brinquedos submetidos aos terrores da eliminação e, pior ainda, do esquecimento, o ratinho ao preconceito e à incompreensão, os heróis ao pavor de se saberem excepcionais e terem de se apequenar para “caber” em nosso mundo comezinho. Os Incríveis 2 não tem nada disso, apenas uma história divertida narrada com palpitação e encanto – nada de errado nisso, claro, e bem acima do mero fanservice que são praticamente todas as demais sequências da Pixar. Mesmo assim, o estúdio da luminária é capaz de mais, como redescobrimos há tão pouco tempo com Divertida Mente.

P.S.: o curta de abertura é o singelo Bao, que também aborda a relação tumultuada entre pais e filhos, além de ser o primeiro comandado por uma mulher asiática na empresa, a diretora Domee Shi. Em seus curtíssimos minutos, uma meditação comovente sobre barreiras emocionais.