“Quem não precisa ter um sonho?” 

A jornada da heroína romântica por definição é narrada em “Paloma”, novo filme de Marcelo Gomes, que apresenta uma magnífica Kika Sena como a personagem-título – papel que já lhe rendeu o troféu Redentor de Melhor Atriz no Festival do Rio. 

Rompendo com seu mundo comum, Paloma vai em busca de seu reino iluminado, apesar de tudo ao redor lhe gritar que ela não pode ter o final feliz que almeja. Casada com Zé, mãe de Jennifer, ela sonha em casar de véu e grinalda na igreja. Para tanto, deposita sua fé em uma cartinha endereçada ao Papa Francisco, no Vaticano. A inspiração para a história veio de um caso real envolvendo uma uma mulher transgênero que morava em uma pequena cidade do interior do Pernambuco. 

Neste mergulho na existência de Paloma – mulher feita, extremamente católica e devotada aos seus -, Marcelo Gomes, um dos mais brilhantes, mas talvez não tão reconhecidos cineastas brasileiros, traz elementos já vistos na própria filmografia anteriormente. Há ecos de “Deserto Feliz” (roteiro dele, direção de Paulo Caldas), “Era uma vez eu, Verônica” (roteiro e direção dele) e “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (co-direção com Karim Aïnouz). Isso tudo para trazer a jornada arquetípica de uma princesa que quer obter sua “vida lazer”, ter um salão de beleza e levar uma vida de “mulher séria e casada aos olhos de Deus”. 

“Paloma” retrata os percalços que vive uma mãe trabalhadora, tendo como mais um elemento a sombra da maldade que a circunda. A simetria entre o filme e “Madalena”, drama dirigido por Madiano Marcheti, se presentifica com a transfobia que culmina no espancamento de Rikelly. Aquela comunidade que acolhe e acode Paloma, das amigas trans, prostitutas, mulheres marginalizadas, está em paralelo na vida dela, que precisa manter o casamento com Zé sem reticências. Mas os desafios vão se intensificando na vida da protagonista, que ainda tem que passar dias sob o sol, trabalhando em uma fazenda colhendo frutos, sendo constantemente ameaçada de demissão e xingada pelos algozes. 

Nasce uma mulher 

Natural do Alagoas, Kika Sena é arte educadora, diretora de teatro e atriz. “Paloma” representa o marco inicial de uma carreira que promete ser fulgurante nos cinemas – ela também está no elenco de “Noites Alienígenas”, ganhador do Festival de Gramado 2022 e em exibição na Mostra de SP. A performance como Paloma é cheia de entusiasmo, delicadeza, beleza, melancolia e esperança. Na cena em que deixa a chuva cair sobre seu rosto e lavar a alma, Kika/Paloma nos mantém submersos em seu desejo irrefreável de alcançar a felicidade. Ali, naquele momento, ela torna-se. 

Na luta por esse sonho, Paloma descobre que talvez tenha que trilhar um caminho solitário, mas, resiliente, aposta na sua fé e espírito inquebrantável. A sensação ao final do filme é que talvez, o roteiro de Gomes – que contou com a colaboração de Gustavo Campos e Armando Praça (de Greta) – pudesse levar a heroína para uma direção mais otimista. Que o motorista do caminhão que a buscava e levava para a fazenda pudesse ter permanecido e não sumido da narrativa. 

Igual fizera ao mostrar a produção de jeans no interior de Pernambuco em “Quando o Carnaval Chegar”, Marcelo Gomes retrata em “Paloma” mais um causo instigante. Aqui, a partir de uma história de amor, de sonhos que não envelhecem e de uma personagem clássica, heroína romântica que já entra para o rol das mais incríveis do cinema.