É tentador vislumbrar o ser humano por trás das roupagens do poder, como inúmeras cinebiografias de políticos atestam. Raramente, entretanto, alguma coisa verdadeiramente significativa ou original é dita sobre o biografado. “A Viagem de Pedro”, novo filme de Laís Bodanzky (“Como Nossos Pais”), transpassa esse obstáculo, tanto por narrar um período na vida de D. Pedro I sobre o qual há poucos registros históricos como usar o imperador como âncora para explorar uma série de outros temas. 

Aqui, acompanhamos D. Pedro I em sua fuga de volta a Portugal, onde pretende guerrear com o irmão e instituir a filha como rainha da Coroa Portuguesa. Escorraçado do Brasil e rejeitado na terra natal, Pedro é obrigado a confrontar, na longa travessia oceânica, o fato de que talvez tenha feito as escolhas erradas na vida – um domingo na vida de um homem de meia-idade comum, portanto. 

Tudo isso é filmado por Bodanzky na proporção de 1:33, aquele formato de tela quadrado. É o tipo de artifício que geralmente deixa o espectador precavido com um pé atrás – afinal, ele pode rapidamente descambar para uma afetação fácil, usada para suscitar palavras como “intimista” ou “claustrofóbico” nas críticas. 

Aqui, no entanto, a proporção utilizada realmente entra em consonância com os quadros cuidadosamente compostos de Bodanzky, bem como sua câmera próxima, mas nunca intrusiva. O resultado é que você aprende a viver no mar com esses personagens. 

Isso se torna cada vez mais importante conforme as fronteiras entre passado e presente, espiritualidade e concretude, se tornam turvas. A vida de monarca bon-vivant tem um preço e, com sua saúde deteriorando-se, “A Viagem de Pedro” mergulha fundo na psique em frangalhos do imperador, enquanto os fantasmas do seu passado voltam para assombrá-lo. 

Exílio marítimo

E o que esse homem vê quando seu reflexo o encara na água? Bodanzky se interessa menos em achar uma resposta unívoca, e mais em usar a pergunta como trampolim para destrinchar as interseções entre masculinidade, política e raça. 

De fato, em uma sociedade altamente protocolar e performativa como aquela em que Pedro I estava inserido, a masculinidade aparece como desdobramento dos jogos políticos, e vice-versa. Daí a tensão que surge do contato com o mundo africano – aqui, representado pelos escravos a bordo da embarcação de Pedro, falando abertamente sobre sua sexualidade e seus deuses. 

O nó, portanto, onde essas três linhas temáticas se cruzam é o grande interesse de Bodanzky – e se há um porém nessa tapeçaria talvez seja mesmo no que diz respeito aos escravos. Enquanto produtores de contrastes e tensões no mundo de Pedro, a diretora sabe o que fazer com esses personagens. Mas quando chega o momento de dar uma dimensão interna maior a eles, acaba perdendo a mão. 

Tome como exemplo a subtrama envolvendo Dira (Isabél Zuaa) e Lars (Welket Bungué, que pôde ser visto no recente “Crimes do Futuro”, de David Cronenberg). Lars é um ex-escravo transformado em almirante orgulhoso, que renegou sua vida pré-uniforme; Dira, por outro lado, é parte da comitiva de escravos de D. Pedro. O destino desses dois se entrelaça nos momentos finais do filme, e fica a impressão de que as coisas talvez tenham sido resolvidas de forma muito fácil – a sensação de que toda essa sub-trama foi uma ideia tardia no processo criativo. 

As barbas do imperador


Dado o que está em jogo, portanto, dá pra imaginar a tarefa árdua que é sustentar um estudo de personagem desses. Cauã Reymond dá conta do recado. O segredo talvez resida, em parte, no fato de que nunca esquecemos totalmente que aquele na tela é Cauã Reymond. O que não significa que o ator não é bom – ele é, mas está longe de ser um intérprete camaleônico, e sua aura de galã global está sempre presente. 

(E poderia haver algo mais apropriado para este D. Pedro, um sujeito que se orgulha de projetar uma imagem de garanhão, que vê mulheres e terras como intercambiáveis, meras posses de seu inventário? O cara provavelmente iria querer ser interpretado pelo Cauã Reymond, mesmo). 

Mas a escalação do ator (que também é um dos produtores do longa) traz ainda uma outra vantagem: em um mar de sotaques – alguns oriundos da Europa, outros da África – D. Pedro I tem um idioma próprio: o português brasileiro (mais especificamente, o carioquês de seu intérprete). Ou seja: sua posição como o outro daquele cenário político, o estrangeiro à deriva, está sempre bem-marcada – e aqui, de novo, o rosto reconhecível do galã, verdadeiramente berrante em sua fama e beleza, ajuda a manter o personagem isolado, de certa forma.  

E o que espera pelo ex-imperador do outro lado do Atlântico? A areia escura e dura das praias europeias, com suas formações rochosas hostis. Trôpego e moribundo, só lhe resta seguir em frente, como um rolo compressor caindo aos pedaços. É que já é tarde demais para tentar ser qualquer outra coisa.