Nos anos 1960, o cinema da Europa Oriental também passava por um processo de forte experimentação com a linguagem. Em poucas épocas as regras pareciam tão interessantes de serem quebradas como o faziam os jovens turcos da Nouvelle Vague na França, os neorrealistas na Itália ou os cinemanovistas no Brasil durante esse período.

 Nesse contexto, a diretora checa Vera Chytilová foi uma figura proeminente, embora nem sempre lembrada com a devida atenção na história da Sétima Arte, que tão comumente prefere por suas representantes do sexo feminino na posição de “musas”, colocando para debaixo dos panos as suas “criadoras”. Chytilová se enquadra nesta última categoria, e com seu filme “Sedmikrásky” (mais conhecido pelo título em inglês, “Daisies”), de 1966, ela entregou aos espectadores uma obra que até hoje impressiona por sua ousadia em termos de experimentalismo.

Na trama, difícil de ser sumarizada, duas jovens moças decidem que serão más porque o mundo é mau. Sendo assim, elas pregam uma série de peças em homens mais velhos, nas quais uma delas faz ares de Lolita para seduzi-los apenas para ser levada a um farto jantar; ao chegar ao local, sua “irmã” aparece para atrapalhar os planos de sedução e comer muito. As duas sempre fogem em seguida, rindo como crianças, enquanto se metem em outras confusões.

Com atuações propositadamente caricatas que dão um tom farsesco ao filme, Ivana Karbanová e Jitka Cerhová impressionam pela sensação de simbiose que conseguem passar ao espectador entre suas Marie I e Marie II, como comumente se chamam as protagonistas de “Sedmikrásky”. Elas parecem dominar a proposta da diretora de criar uma espécie de tratado cinemático-filosófico-político com cara de comédia pastelão, dando às personagens o correto tom infantil, exagerado e absurdo.

Dessa maneira, a própria proposta de atuação se encaixa nos elementos simbólicos mais proeminentes. Dentre eles, destacam-se as flores, as maçãs e a comida. As margaridas que dão nome ao filme são sempre usadas em uma coroa por uma das Maries. Essas flores campestres tradicionalmente remetem à virgindade e juventude, dois elementos que perpassam toda a trama de “Sedmikrásky”. Já as maçãs, que também rodeiam o universo das meninas, remetem ao fruto proibido procurado pelos “velhotes” que assediam as Maries, podendo também ser associadas, no caso da cultura checa, à boa sorte das mesmas em sempre se safarem de suas travessuras. Sem interesse por sexo, surge a comida como grande objeto de desejo das Maries, que não dão nenhuma atenção aos bons modos esperados das mulheres durante as refeições e menos ainda ao ato sexual que seus parceiros de almoço almejam.

Se o espectador não capta esses e outros simbolismos do decorrer do filme, isso é o de menos. A trama em si diverte, faz rir, delineia-se em tantas camadas quanto possível, de forma que podemos encontrar referências ao momento de estagnação do regime comunista da Tchecoslováquia da época e a questionamentos filosóficos sobre a brevidade da vida e a própria existência, ou podemos simplesmente rir das loucuras das duas pequenas. O ritmo ágil do filme o mantém acessível a um público mais vasto do que a caracterização de “filme experimental” faz parecer ser possível.

Como um quebra-cabeça no qual cada peça encontra o seu encaixe, o ritmo de “Sedmikrásky” casa também com o olhar que lança para a juventude e, por conseguinte, para a maturidade. Os homens mais velhos são representados sempre em roupas formais e seus desejos expressos são sempre por privação, como se percebe nas cenas nos restaurantes, em que Marie I e Marie II pedem pratos e mais pratos, sempre começando por grandes fatias de bolos, enquanto que os homens as assistem, frustrados ou comendo comedidamente. Numa das cenas, um deles diz “não gosto de coisas doces”, enquanto que, em outro momento, outro homem deseja apenas que uma delas lhe compre jornais, símbolo de consciência e maturidade em contraponto ao mundo paralelo em que as meninas parecem viver. Não por acaso, quando o filme aponta para uma possível saída à enrascada em que as meninas se meteram, elas estão literalmente vestidas com jornais, consertando e arrumando a bagunça que fizeram, “trabalhando duro”, como elas mesmas descrevem, agora coloridas apenas em tons de cinza.

Outra grande preocupação de “Sedmikrásky” é a questão da montagem, a qual garante a importância dessa obra mesmo que sua trama nada significasse. Tal como vemos nas vanguardas cinematográficas da época, cada uma a seu jeito, Chytilová também engendra um jogo no qual subverter a linearidade normatizada na edição cinematográfica se dá constantemente, resultando quase que numa gramática própria para o filme. Dessa maneira, as personagens principais podem surgir, num mesmo segmento, nas mais variadas cores com a utilização de filtros intensos, tão variados quanto o número de cortes, assim como podem ir de um take a outro para locais completamente diferentes como se tal passagem fosse a mais “natural” do mundo em termos de continuidade.

É bem verdade que essa “brincadeira” já era feita pelos turcos da Nouvelle Vague ou pelos cinemanovistas. Da mesma maneira, todos fizeram experimentações sonoras que causam a sensação de quebra e a consciência ao espectador de filme como uma colagem de pedaços de sons e imagens. Porém, Chytilová leva isso ao extremo, como bem vemos na cena em que Marie I e Marie II, em uma de suas várias brincadeiras, “cortam” pedaços de si mesmas com uma tesoura e cada frame começa a surgir fragmentado na tela, para depois ser recomposto e dar continuidade à história das meninas. São vários os momentos em que um verdadeiro trabalho artesanal de colagem e montagem se dá na tela, com a fotografia de Jaroslav Kucera, marido da diretora, em destaque no trabalho de cores e luz, no qual a cena do trem e a das borboletas se destacam.

Com a inevitável punição das protagonistas ao final, “Sedmikrásky” surge como uma lição sobre a chegada das consequências para cada ação, não importando se se é jovem ou velho. Porém, o filme é como o castigo de uma mãe branda: você pode até ser pego, mas foi tão divertido fazer travessuras que tudo valeu a pena. Da mesma maneira, para o espectador, entregar-se à construção absurda desse filme pode até atordoar num primeiro momento, mas as potenciais diversão e reflexão garantem que a viagem surreal para o universo de Vera Chytilová seja deliciosa.

Nota: 9,0