Há muitas décadas atrás, quando os então jovens críticos da publicação Cahiers Du Cinéma proclamaram Alfred Hitchcock como um dos grandes diretores do cinema norte-americano, a ideia parecia loucura. De lá pra cá, os críticos viraram diretores como Jean-Luc Godard e François Truffaut, deram corpo a Nouvelle Vague, e Hitchcock fez ao todo 69 filmes e se tornou um diretor cultuado, cuja adoração é óbvia por parte de qualquer cinéfilo. Um dos filmes que contribuiu no movimento de aceitação de Hitchcock como um verdadeiro artista do cinema foi “Um Corpo Que Cai”.

Apenas pela sinopse, “Um Corpo Que Cai” pode muito bem lembrar enredo de novela mexicana. O detetive aposentado John ‘Scottie’ Ferguson (James Stewart) tem pavor de alturas e investiga a esposa de um velho amigo, Madeleine Elster (Kim Novak). O motivo: ela apresenta tendências suicidas e acredita ser possuída por uma mulher morta, sua tataravó Carlotta Valdes.

Scottie acompanha seus passos e termina por se apaixonar por Madeleine, que morre algum tempo depois. É aí que surge em sua vida outra mulher, Judy Barton (também interpretada por Novak), cuja semelhança com a falecida é intensificada pela obsessão de Scottie, que transforma Judy, aos poucos, numa cópia de Madeleine. A partir daí, a trama se torna cada vez mais complexa, pois nada parece ser o que realmente é nessa história.

Sobre ver e ser visto

Engana-se quem pensa que “Um Corpo Que Cai” chega perto de ser uma história de amor ou mesmo de paixão; é uma história de fobias e loucuras. Ao irmos além da hoje obrigatória associação do nome de Hitchcock ao cinema “de arte”, o que temos nesse filme, um de seus melhores trabalhos dentre uma generosa lista de clássicos, é um verdadeiro estudo sobre a natureza do olhar, remetendo à própria condição do espectador.

São incontáveis os elementos que tornam “Um Corpo Que Cai” único dentre os clássicos dirigidos por Hitchcock.

Scottie começa o filme como uma espécie de voyeur da mulher que viria a se tornar seu objeto de desejo. Da mesma maneira, o espectador observa, a uma distância segura, o desenrolar da trama. A obsessão dele por Madeleine (e nossa, pelo filme) começa aí.

Por sua vez, não é a altura em si que causa pânico em Scottie, mas ver-se nas alturas e criar toda sorte de imagens mentais que predigam uma possível queda. Não bastasse isso, quando Madeleine morre e Judy surge em sua vida, o que o personagem de Stewart persegue morbidamente é a recriação, em primeiro lugar, do visual da primeira na segunda, pedindo-lhe para pintar os cabelos e usar roupas específicas; em segundo lugar, ele deseja reencenar, de maneira mórbida, fatos anteriormente vividos ao lado da falecida. Em suma, ele deseja rever o filme de sua vida.

Sobre ver além

Hitchcock, conseguintemente, encara a visualidade em “Um Corpo Que Cai” não apenas como a metade da palavra “audiovisual”. Ele constrói momentos de grande impacto à percepção do espectador a partir de simbolismos captados no que é visto, e não apenas no desenrolar da intrincada narrativa do filme.

São vários os exemplos: em dado momento, Madeleine visita um museu para rever o retrato de Carlotta, que acredita possuir seu corpo e mente. Pequenos detalhes emergem para criar a conexão entre as duas mulheres, tais como o fato de ambas carregarem delicadas flores, estarem sentadas de maneira rígida e terem penteados com arrumação semelhante. Mais à frente, Madeleine joga nas águas da Baía de São Francisco pétalas das mesmas flores que carregava num buquê, uma referência à sua tentativa de suicídio no mesmo local. Posteriormente, quando Scottie conhece Judy, ele lhe oferece uma flor, simbolicamente representando o início da reconstrução da amada morta na figura da outra mulher.

Cores específicas também ajudam a criar padrões de grande influência na narrativa e imersão do público na trama de “Um Corpo Que Cai”. Dentre elas, destaca-se o uso do verde no cenário e, especialmente, no figurino. Em dada sequência, Madeleine destaca-se de todas as pessoas presentes num restaurante por usar uma espécie de casaco verde e vistoso sob o vestido, contrastando com a predominância do vermelho no cenário.

O verde e o vermelho retornam no figurino de ambos em outro momento crucial da trama, após Scottie salvar a amada de uma tentativa de suicídio, e novamente no cenário durante o processo de “transformação” de Judy para ficar cada vez mais parecida com Madeleine, simbolizando o poder dela sobre o protagonista e a loucura deste. O passeio pelo parque das centenárias árvores sequóias também marcam o padrão do verde, agora num simbolismo de vida e morte mais profundo.

As flores e uso de cores são apenas um exemplo, mas em “Um Corpo Que Cai”, esse tipo de padrão criado a partir de repetições de elementos específicos é uma constante. As espirais são outro óbvio exemplo de pista visual para intensificar ao público o medo irracional de Scottie das alturas. Não por acaso, são esses padrões que surgem em seus pesadelos e delírios, juntamente às cores saturadas, destoantes do resto do filme. Também já dá o tom do filme desde seus primeiros minutos, pois surge nos créditos iniciais, belamente compostos por Saul Bass:

E ver as contradições

De certa forma, as espirais não apenas se relacionam à vertigem que dá nome originalmente ao filme. Elas trazem à tona também a natureza contraditória de seu personagem principal. Scottie tem medo de altura por temer cair e morrer; ao mesmo tempo, torna-se obcecado por uma mulher morta (logo, pela morte em si).

Por sua vez, a imagem que criamos de Madeleine também flerta com tais contradições. Sua obsessão é pela imagem de Carlotta e de se tornar liberta dela a partir da própria morte; porém, na sequência das sequóias, seu desejo parece titubear, ainda que ela aparente ter também medo de viver. Por sua vez, quando Judy surge em cena, ela é igualmente uma contradição: o estilo do penteado, as cores da maquiagem, a maior fluidez e variedade de cores dos tecidos que usa nas roupas a contrapõem à figura de Madeleine, a loira fria e platinada cuja imagem mais emblemática remete ao conjunto de terno e saia cinzas que a figurinista Edith Head tratou de tornar icônico.

São incontáveis os elementos que tornam “Um Corpo Que Cai” único dentre os clássicos dirigidos por Hitchcock. Destaca-se até hoje no filme o uso de especificidades da linguagem cinematográfica para intensificar a experiência de imersão na trama, tornando o espectador, esse também, um obcecado como Scottie ao permitir que nos apaixonemos por um filme que, se contasse apenas com sua premissa absurda, poderia muito bem ser uma reprise de novela mexicana. A diferença é o “como” (como contar a história), e não apenas o “qual” (qual é a história).

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